domingo, 26 de dezembro de 2010

[38] Polvos

Minha gente. Eu gostaria de entender muita coisa à qual o meu cérebro ainda não me deu capacidades para tal. Logo, atirando alguns dados ao ar, posso ter a remota hipótese de todos caírem com a face “seis” voltada para cima. Ainda no outro dia, alguém me disse que “o Mundo é bem mais pequeno do que nós imaginamos”. E realmente fiz umas associações. O planeta Terra tem cerca de 500 milhões de quilómetros quadrados, onde vivem cerca de 6 biliões de pessoas, portanto não falta espaço, apesar dos oceanos, para as pessoas viverem. Mas há tanta gente que reconheço na rua que é levada às cavalitas até ao seu pedestal, espezinhando umas quantas pessoas na sua tarefa diária. E assim, muito rapidamente, numa atitude típica de sectarismo nada separatista, crio três patamares de pessoas: as que são espezinhadas diariamente, sem direito de antena (e aquele que têm, é ridicularizado e atirado para o lixo); as que transportam os grandes nomes, desprovidos de sucesso pessoal sem se importarem com o assunto porque estão perto dos grandes (apesar de nunca virem a sê-lo, porque bajulação resulta apenas em alguns casos, como haver órgãos sexuais diferentes entre o sujeito bajulado e o bajulador); e, obviamente, os grandes nomes que, apesar de ocos na sua maior parte, partilham o seu enorme conhecimento em direitos de antena de forma tão exuberante que mais parece uma lavagem cerebral aos espezinhados.

Isto que acabei de fazer chama-se estereotipar uma sociedade que, obviamente, não é reflectida na sua totalidade e onde haverá patamares intermédios e outros um quanto insignificantes. Mas que há muita gente espezinhada neste país que costuma não ser apelidado de terceiro mundo por ter uma boa rede de água potável, esses há. Mas que há muitos grandes nomes que mais valiam ser associados a corrupção, ditadura, coacção e suborno, em vez de, digamos, política, esses há. E o pouco que este comboio ainda anda para a frente, ou menos para trás, é devido a toda a massa humana que luta todos os dias pelo seu mísero ordenado mínimo ou pela sua pensão ridícula que certa gente ainda tem a lata de cortar.

De homem era aumentarem ainda mais os impostos! Ah, já o vão fazer. Espezinhados? Ora essa, minha gente. 2011 aí vem. Suspirem. Ainda temos alguns dias para viver à grande!

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

[37] Fractal

Abro os olhos e dou comigo sentado numa cadeira metálica de qualidade discutível. Os meus braços estão apoiados numa mesa poeirenta com marcas de cola e de caneta, enquanto o balançar dos meus pés termina num radiador desligado. A sala está propositadamente a meia-luz, criando um ambiente propício a algo incómodo, que não sei bem identificar. Um espelho reflecte a minha pessoa, despenteada e bem mais magra que há um ano, e bem mais barbuda que há dois dias. Levanto-me, não alcançando pistas sobre o meu paradeiro. O meu ritmo cardíaco sobe e posso senti-lo nos meus pulsos. Bato à porta e chamo por alguém, de nome improvisado Januário. Ninguém responde. Provavelmente porque não haverá ninguém lá fora com tal nome.

A porta abre com estrondo no momento em que eu fazia um carrossel à volta da fantasmagórica sala. Um tipo de 1,80 de altura entra, a passos largos, fechando a porta com brusquidão. Dá-me a ordem para me sentar. Com um ar carrancudo, o tipo tinha cara de caso. Pergunto-lhe o que ali faço, e ele apenas refere que quem faz perguntas é ele próprio. Calo-me. O meu pulso subiu para 120. Talvez mais. Nunca fui hábil a medir pulsos. Só palmos. O tipo sentou-se à minha frente e eu tive um déjà vu. Eu tinha tido a mesma visão que tive anteriormente ao espelho. Mas qual espelho? Desviei a cabeça como quem coça o pescoço por causa de uma mosca e assustei-me. Eu continuava a ver-me ao espelho. Mas o tipo que estava à minha frente era tal e qual eu. Eu estava confuso, e ele decidido. Eu medroso e ele destemido. Eu nervoso e ele cinicamente tranquilo. Eu tensamente prostrado e ele sarcasticamente sorridente. Apercebendo-se da gravidade da questão, e por estar convenientemente informado, afirmou:

“Eu sou igual a ti. Mas eu não sou como tu, tal como tu não és como eu. Nós os dois juntos não somos um. Logo não tentes ser como eu num dia, e como tu noutro. Eu sou o teu pólo negativo. Arranja os nomes negativos que entenderes. Não adiantará.”

“Sê quem és e serás respeitado. De uma forma ou de outra. Escolhe um lado e segue-o com as tuas forças. Porque quando reparares que agiste bipolarmente, arrepender-te-ás. E aí, apenas vai restar o pólo contrário àquele que tu julgavas ser antes.” 

domingo, 28 de novembro de 2010

[36] Ideais

Se eu lhe pedisse, neste momento, para me definir a palavra felicidade, você iria provavelmente falar em realização profissional, em amor, em amizade, em carinho, em família. Um “n” número de coisas que nos preenchem no nosso interior e que nos tornam “felizes”. Abordarei a questão segundo três tópicos: equilíbrio social, amoroso e profissional, sem uma ordem preferencial. Porque nunca nos poderemos considerar totalmente felizes se não nos sentirmos definidos na integridade dos parâmetros.

In”feliz”mente, passando a redundância metafórica, conheço muita gente que se denomina como alguém feliz quando não o é. Quando a expressão exterior de auto-confiança nada mais é que uma máscara para a verdadeira face de sofrimento e incongruência. Quando o egoísmo se torna uma arma para evoluir, é porque não sabemos viver com os outros. Quando o desprezo é prova de determinação, não é necessária muita reflexão para nos apercebermos que não sabemos amar.

Felicidade ultrapassa muitas barreiras, mas também muitos clichets, preconceitos e estereótipos encomendados a um mau conselheiro. Para mim, felicidade significa ter, ao meu alcance, várias mãos: as dos meus amigos, as da minha família e a do meu patrão. Como sempre foi e sempre será, dando e recebendo. A comunhão de valores humanos e não de interesses, de prestígio e não de emproamento, de compreensão e não de cinismo, só nos trará vantagens a longo prazo. A curto prazo tudo pode ser bonito, mas tal como o azeite, os valores e a justiça também vêm ao de cima.

Como não tenho um ideal definido de felicidade e por pensar nunca ter tido uma perfeita junção entre os três equilíbrios acima referenciados, prefiro imaginá-la do que forçá-la. Dormirei muito mais descansado com a imagem idealista no meu cérebro, do que com a imagem arrogante que empurrou alguém para baixo enquanto eu era puxado para cima.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

[35] A Árvore

Boa noite. Mas pode ser bom dia ou boa tarde. Da mesma maneira que você, senhor leitor, poderia ter bebido um copinho de leite e visto as notícias sobre o ridículo Orçamento de Estado em vez de ler o texto de um escritor que começa a escrever sem saber onde vai acabar. Sinto-me virado para a Natureza. Parece-lhe bem, senhor leitor? Não, pois não? Não seja nem pense redutor. Vou falar da vida, como mil e uns já fizeram.

A árvore da vida é complexa. Nem a mais ramificada árvore do mundo pode representar o leque de opções que nos são postas à frente dia após dia, mês após mês, ano após ano. Nós somos postos à prova como minhocas repelentes que demoram cerca de 80 anos a escalar uma árvore gigantesca. Onde vai haver teias de aranha cíclicas e irritantes, cordas para o abismo ou para o paraíso, elevadores alimentados por mérito ou bajulação, e muitos ramos. Mas mesmo muitos. Partidos, rígidos como um calhau, escorregadios como manteiga, traiçoeiros como um vendaval inesperado. O caminho que nós, minhocas repelentes, tomamos, deriva dos nossos ideais, princípios, inteligência, perspicácia, matreirice, batotice e valores humanos (ou minhoquices). Da mesma maneira que não há dois seres humanos iguais, não há dois caminhos iguais a tomar. É esse o fascínio da vida. Nada é igual a nada. A unicidade de todo e qualquer momento deve ser aproveitada sem ter em conta arrependimento, mostras de fraqueza ou inconsistências cerebrais.

Quem pensa que está num beco sem saída por, de algum macabro modo, se ter enleado numa bela teia de aranha, nunca terá razões para desistir. Porque, até aí, a vida tem a capacidade de nos surpreender ao nos mostrar que um ínfimo e inocente ramo pode ter continuidade. Como? Com a evolução da espécie humana, pequenas gotas estão constantemente a ser regadas na base da gigantesca árvore. Estaremos a falar de uma árvore infinita? Não. O infinito não existe. Tudo tem um limite. Mas os limites do Homem são definidos por ele próprio.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

[34] Filtros

Algures numa fábrica localizada num subúrbio industrial, os competentes e estafados funcionários continuam a desempenhar a sua função com aspereza. Embalando pacotes e seleccionando os de melhor qualidade, o rigor exigido é de nível máximo. O capataz, emproado e de peito feito como se posasse para a New York Times, olha constantemente por trás do ombro, estalando os dedos para dirigir a orquestra dos seus subservientes. Hora a hora, toca a sineta, como uma luz de esperança para os demais desgraçados que apenas têm pacotes na mão para seleccionar.

Os dias não têm sido bons na empresa. Os lucros nunca foram muitos, mas têm regredido ainda mais. O capataz convoca uma reunião de emergência, onde questiona a capacidade dos filtradores e os responsáveis pela decisão final posteriormente enviada para a empresa-mãe. O capataz decide estar mais próximo do processo de selecção, mas não consegue discordar de decisão nenhuma. Algo se passa. Algo tem que mudar. Os produtos estão a ser recolhidos dos piores locais, com certeza. A crise financeira está a estragar tudo. A confiança dos consumidores baixou a pique e nada é agora aproveitável. O que fazer? Isto tem que ter uma solução!

Não, meus amigos. Não tem. O que se está a pedir aqui é algo muito simples e de quase impossível execução. A atitude da mente humana perante o desconhecido vai sempre continuar a filtrar e a filtrar. Onde apenas restará o lado mau. A sociedade onde vivemos é regida por atitudes separatistas, onde a quebra das regras é algo a recear. Logo, se eu vir um senhor agachado ao pé dum carro, vou pensar instantaneamente que ele o está a roubar em vez de pensar que deixou cair uma moeda que está a limitar-se a apanhar.

A impaciência, o stress e a constante desconfiança que o próprio ser humano incutiu na sociedade fez com que o capataz nunca mais tenha boas colheitas. Quem se deixar levar pela corrente da preguiça humana, nunca sequer se questionará. Quem achar que existe uma solução para isto, já é uma boa colheita.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

[33] Nulidade

Num comboio regional, apenas quatro pessoas se encontravam na minha carruagem. Além de mim, despenteado e sujo como uma esfregona vasculhada, um casal idoso ria-se das fofocas da “Casa dos Segredos”. Mais ao fundo, uma rapariga levantava-se e punha a sua cabeça fora da janela, enquanto o caminho de terra e arbustos era palmilhado a velocidade cruzeiro. Debruçando-me no peitoril poeirento, a imagem que vislumbrei era digna de um prémio de fotografia. Sem qualquer tipo de vergonha e com uma ponta de insolência, levantei-me e atravessei meia carruagem, para poder ficar na perspectiva perfeita para aquele espectáculo. Ela lá se mantinha, impávida, com os cabelos ao vento iluminados por tons dourados vindos de um pôr-do-sol prestes a apresentar-se ao serviço. Os seus olhos semicerravam-se perante o contraponto do vento, suave como uma ventoinha num dia de verão.

Naquele momento, permiti focar-me naquela imagem e pensar se a cabeça de fora da janela significaria calor, desejo de liberdade, adrenalina, imponência, classe, rebeldia, vontade em saber a próxima estação ou mesmo apanhar ar para não ficar maldisposta. Quando o telemóvel dela tocou, desesperei por ver que tal momento apenas tinha durado um minuto. No fim da chamada, ela voltou a sentar-se e olhou para mim durante milissegundos. Esses milissegundos ridículos que nada significam foram azo para umas horas de reflexão. Para lá da óbvia e explícita expressão “Que é que estás aí a fazer, já que estavas lá ao fundo?” que os olhos dela transpiravam, aquele cruzamento poderá ter significado indiferença, espanto, surpresa, arrogância, altivez, simpatia, consideração, desprezo, vontade em chamar um segurança para me acusar de assédio, vontade em não colocar a cabeça de fora novamente sob o risco de eu me sentar, desta feita, ao lado dela, ou até amor.

Como é óbvio, nunca soube nada disso, porque não me dignei a abrir a boca. Ou seja, “nada” aconteceu. Para mim, muito aconteceu. Porque qualquer episódio, com ou sem acção, é experiência de vida e podemos retirar ilações subordinadas a esse acontecimento. A reflexão sobre cada segundo da nossa vida pode tornar os segundos seguintes mais ricos. Mesmo que reflictamos sobre estar num comboio a ler fofocas da “Casa dos Segredos”.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

[32] Vírus

Um comboio arrogante cuja cadência se torna insuportavelmente imparável é como uma bola de neve a rebolar alegremente ao longo de uma ravina sem entender que, a cada dez segundos, duplica o seu tamanho. Um vírus informático que, pé ante pé, atinge as fatias fulcrais de um delicioso computador é como um ciclista exausto que acredita que não o está, alcançando feitos inatingíveis.

O ser humano pode não ser uma máquina, mas comporta-se como tal, numa sociedade onde existem limites, condições e restrições constantes. Necessita de dormir para recarregar baterias, baseia-se em rotinas inquestionáveis e tem avarias ou, se preferir, doenças. Mas é no centro deste sistema que tanto nos podemos transformar em monstros como em anjinhos. Tudo dependente de uma atitude, de uma ordem, da execução de um comando. A potência que um vírus pode ter no nosso cérebro assume-se como perigosamente imperceptível. Mas a sua resiliência e a sua teimosia tornam-no num Adamastor cuja vitória nunca será colocada em causa. A força da nossa mente associada à força de uma ideia errada pode transformar um conto de fadas num inferno. Um paraíso oasiano num atentado bombista na Palestina. Um príncipe num simples sapo, de guelras feias e asquerosas.

O ser humano, o ser mais egoísta que existe, nunca assumirá que somos como máquinas. Mas a verdade é que as criámos à nossa imagem, para combater a preguiça daquilo que não queremos fazer. O ser humano não compreenderá a capacidade da sua mente até a testar com sapiência. E a infecção que é uma ideia mal formada na nossa cabeça nunca será visível até chegar o momento em que a máquina se desliga e que nunca mais terá reparo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

[31] Paquete

Meus caros amigos, sejam bem-vindos a bordo deste majestoso navio. Gozem bem a noite! Haverá muitas surpresas para vocês. Obrigado!” Assim falou o porta-voz do paquete Abdulrahman. Os muitos convidados, de todas as cores e feitios, sorriam cinicamente, como se estivessem contentes por ali estar. Dois rinocerontes discutiam o local onde se encontravam, enquanto remexiam o açúcar do café. Uma coruja convencia o mordomo de que estavam, com certeza, algures no oceano Índico. Uma mula, peneirenta e mal vestida, afirmava que nunca tinha vislumbrado tal paquete em nenhuma revista cor-de-rosa. As texturas eram afónicas, os sons irreconhecíveis. As escadas criavam ilusões de óptica. As casas-de-banho tinham a sanita localizada no fim de um corredor de cem metros. O banquete era servido numa mesa cujo jogo de espelhos repetia o mesmo bolo duzentas vezes.

Os convidados deslocavam-se à varanda e percebiam que estavam a voar algures por cima dos Pirenéus, onde duas girafas holandesas guinchavam de vertigens. O comandante do navio sorria bem alto no convés, de olhos fechados, a saborear a unicidade de tal momento. Ao seu lado, os pilotos da força aérea mascavam pastilha num olhar desconfiado. Algures nos quartos de dormir, dois periquitos deliciavam-se com uma feijoada, irreverentes. Os hamsters que haviam cozinhado a mesma sorriam, com bazófia, perante a genialidade de tal relíquia. No intercomunicador, o comandante fez-se ouvir: “Meus amigos, a noite apenas começou. Se tudo parece estranho, esperem pelo que aí vem!”

Preferi acordar a continuar a ver animais de todo o feitio a circularem num paquete voador. A minha cabeça funcionava a alta voltagem. Pode ser confusa. Pode misturar diferentes realidades. Pode até ser irrealista a certa altura. Mas sabe o que quer. Sabe quantos periquitos tem, e a que horas. Sabe a que horas aterra. E sabe, acima de tudo, que não vai perder os passageiros habituais por troca com uns outros que podem ser muito fiéis a início, mas que um dia escolherão outro paquete.

A vida é uma viagem sem destino. Mas sem aqueles que mais gostamos, ela passa a ter um destino. O fracasso.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

[30] Ipiranga

Inovação, conspiração, vôos mais altos, revolução e inconformismo são pontos assentes de muitos daqueles que pertencem a uma geração que floresce a cada dia que passa. Longe ou perto de casa, tudo parece óptimo. Uma ribeira abandonada soa a cataratas do Niagara, uma pizza abandonada parece que saiu do forno, uma bebida odiosa sabe a vinho do Porto do mais doce, um cagalhão cheira a lavanda. Todos nós sabemos o que isso é, e quem não sabe e se mostra curioso ao ler isto, passa a saber o verdadeiro significado da palavra “ilusão”. Os jovens de hoje em dia, e falando por experiência própria, pretendem dar o “grito do Ipiranga”. Mas cada um por si, numa descoberta isolada e auto-guiada pelos recônditos recantos de todo um Mundo que nunca será descoberto no seu expoente máximo. Todos procuram estar sós. Chegam tarde e a más horas, porque ninguém vai reclamar com as horas, comem às horas que a barriga disser, por não haver o preconceito da etiqueta digestiva. Só não compram o que querem porque há uma autoridade superior. Logo, tudo o que fugir à autoridade superior é usado e abusado até às entranhas. Até o tempo acabar.

Se está a viver uma experiência parecida, deixo aqui um conselho pouco importante. Quando aquele tempo acabar, onde nada conta a não ser nós próprios, tudo muda. A sensação de voar como passarinhos numa atmosfera cipreste, ou como gaivotas a sobrevoar o Pacífico, vai realmente transformar-se num comum quarto decrépito, com os restos dos cereais do pequeno-almoço ainda por levar para a cozinha. E aí, necessitam-se algumas coisas: ser-se inteligente, humilde e perspicaz, ao invés de ser egoísta, burro e guloso. Porque quando formos egoístas, vamos estar no quarto decrépito e quando olharmos para o tecto, ainda vamos ver os passarinhos a voar. Quando formos burros, vamos pensar que tudo o que passou não valeu a pena e que tudo voltou à normalidade. Quando formos gulosos, vamos buscar os cereais e enchemos de novo a taça.

Acima de tudo, a auto-descoberta de uma experiência isolada só pode trazer frutos se for partilhada na sua plenitude no mundo comum. Nunca se nos mantivermos isolados na esperança de que ela nunca mais acabe.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

[29] Dois Vultos

A luz tremeluzente de um candeeiro barato incide brechas na parede lisa esmaltada que, noutro espaço temporal, se vislumbrou cheia de quadros e adereços. As sombras, ofuscadas por um vulto desfigurado, criam jogos de diagonalismo que se projectam para o infinito. Outro vulto, ligeiramente mais discreto e pertinente, lança um esgar de desconfiança e de conformismo. Levando as mãos à cabeça, o primeiro vulto enterra a sua alma no seu próprio corpo, na esperança de que o mundo não lhe desabe em cima. O segundo vulto, num espectro indecifrável, mantém-se imóvel e perplexo. A lágrima que pincela o chão escorregadio tira a fotografia à mente de quem se enterrou, enquanto a mão de alguém perplexo finalmente se moveu. Fantasmagórica e fascinantemente, dois vultos com atitudes bem distintas revelam o mesmo sentimento e a mesma preocupação. Mirando um horizonte de esperança infundada e de inconformismo impotente, o sofrimento do primeiro vulto reflecte-se no espelho de água que o segundo vulto criou à sua frente.

A insegurança de um momento pode ser compensada com a certeza de um movimento. Como a frágil peça de xadrez que pode ter inúmeras implicações, num jogo paciente e cinicamente preparado. A lágrima que anteriormente caiu impregna-se no soalho e lá deixa um selo para a eternidade. Mas se mais forem necessárias, elas fazem parte da limpeza da alma e sinal da pureza humana. A revolta tricotada nas entranhas do nosso interior cria pontos de tensão perigosamente marcados, onde o sentido de controlo impulsivo se pode tornar decisivo.

E quem limpará o soalho? Quem ajudará a mover a peça de xadrez? Quem ajudará a controlar a impulsividade, sempre comprometedora? Quem pode ser a voz da esperança e ao mesmo tempo, do realismo? Quando poderá o mundo realmente desabar em cima dos nossos ombros? Quando aquele vulto perplexo deixar de estar presente para assistir à queda da lágrima.

Basicamente, quando deixarmos de ter amigos.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

[28] Missão

Nas instalações deste labirinto tecnológico, a missão do agente especial encarregue não se adivinhava fácil. Raios laser banhavam um corredor todo ele insuflado por molduras ridículas, atrás das quais se poderiam esconder cofres com documentos importantes. As paredes, brancas como cal, pareciam prontas a registar num tom de anil todas e quaisquer impressões digitais que ousassem tocar-lhes. Saltando de uma divisão para a outra, equipamentos do mais alto gabarito informático faziam suster a respiração do jovem agente. Qualquer toque poderia ser fatal e accionar o alarme. Os óculos com visão nocturna não permitiam vislumbrar todos os pormenores, mas a missão era clara e teria de ser cumprida. A pouco e pouco, o espaço X estava mais próximo. Luzes provenientes da projecção dos faróis de uma carripana no corredor ainda fizeram palpitar o agente especial, mas foi apenas isso. Um susto.

O telemóvel vibrou. Uma mensagem tinha sido recebida. Pânico total. Toda uma missão podia ter sido posta em causa! Será que os detectores assinalaram alguma coisa num gráfico sinusoidal? Esperava-se que não. Apenas alguns segundos de espera permitiram confirmar isso mesmo. O jovem respirava fundo, controlando o próprio movimento dos pulmões. Ao dar mais um passo no longo corredor, havia o medo de um pequeno estalo comprometer a missão e falhar o grande objectivo da sua vida.

Ao chegar à porta de entrada para o espaço X, a coragem arrebatou-o e puxou das suas ferramentas. De maneira e eliminar detectores de fumo e movimento por diferenças de temperatura e deslocação de ar. Entrou sem ser detectado. Bingo! Ele descalçou-se, tirou as luvas e agora podia trabalhar com precisão. A chave-mestra! Caiu! Acabou-se! Ouviu-se movimento lá fora. Não havia volta a dar. Era o fim.

“O que estás aí a fazer de cócoras no quarto? Isto são horas de chegar a casa? Vai-te já deitar, antes que me chateie a sério.”

sábado, 29 de maio de 2010

[27] Vinte e Oito

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Onze. Doze. Treze. Catorze. Quinze. Dezasseis. Dezassete. Dezoito. Dezanove. Vinte. Vinte e um. Vinte e dois. Vinte e três. Vinte e quatro. Vinte e cinco. Vinte e seis. Vinte e sete. Vinte e nove. Trinta. Trinta e um. Trinta e dois. Trinta e três. Trinta e quatro. Trinta e cinco. Trinta e seis. Trinta e sete. Trinta e oito. Trinta e nove. Quarenta. Quarenta e um. Quarenta e dois. Quarenta e três. Quarenta e quatro. Quarenta e cinco. Quarenta e seis. Quarenta e sete. Quarenta e oito. Quarenta e nove. Cinquenta.

Imagino que você será apenas mais um dos que não leu o anterior parágrafo até ao fim. Perguntando-me porquê, tento chegar à conclusão de que o ser humano não gosta de rotinas ou de acontecimentos previsíveis, baseados num mesmo molde existencial. Da mesma maneira que se chegaria ao cinema e, num qualquer ecrã gigante poeirento, nos passassem os últimos cinco minutos do filme que iríamos começar a ver. Por mais acostumados que estejamos a uma rotina que até nos pode satisfazer psicológica, emocional ou mesmo até financeiramente, a sensação do “novo” arrebata-nos. Da mesma maneira que chamou a atenção o título do texto não coincidir com a numeração suposta. Como o miúdo de cinco anos que vê o mesmo super-herói que tem na mão a ser anunciado na televisão, pintado de outra cor. É diferente. E vai querê-lo. E em muitas das vezes, vai tê-lo.

Enquanto lentamente chegamos a adultos e ganhamos capacidade intelectual e cognitiva, o querer algo novo pode chocar contra a segurança do existente. A segurança da rotina com a qual sabemos que podemos ser felizes. Aquela que podemos abdicar para tentar chegar a algo melhor. E falhar. Uns lutarão por algo novo e arriscam. Outros acomodam-se. Com o devido respeito, aceito qualquer uma das opções.

Eu gosto de arriscar. Gosto tanto que até poderia apostar que não foram assim tantos a perceber que no meio da rotina recambulesca do primeiro parágrafo, faltava o número vinte e oito.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

[26] Miragem

Sinto o suor a descer pela minha cara, sentindo o seu sabor, impavidamente, a penetrar e a vandalizar o meu paladar. As gotas que escapam enterram-se num areal sem fim, a caminho do abismo da espécie humana. O buraco negro que está debaixo dos nossos próprios pés pode estar protegido por uma camada finíssima de vidro, onde cada passo em falso pode ser o fim. Mas num deserto como este, onde o calor torna cada pegada um tormento e onde cada brisa escaldante é um sinónimo de esperança, parar é morrer. Olhar para o rasto que deixámos para trás não é nem suficientemente encorajador nem melancolicamente belo.

O ser humano que conseguir estar num deserto sem olhar para trás uma única vez, não tem sentimentos. É uma máquina controladora de pulsações, que não pode registar as suas próprias, por não as ter. É gelado como o suor que escorre pelas minhas costas neste inferno. E quem assim é, arrepender-se-á de algo na sua vida. Os que olham algumas vezes para trás são os mais sensatos. À procura de um oásis que possa ter escorregado na ponta dos dedos. De uma gota de água que injecte força e esperança. Tentando ser racional no meio do caos, ludibriando regras e preconceitos, alcançando alguma coisa, por mais pequena que seja.

Mas cada vez mais me apercebo, enquanto faço uma pausa, que haverá sempre alguém na minha vida a querer tirar-me do deserto, e que haverá sempre alguém a querer deixar-me aqui. Eu entendo tudo isso. Pertinentemente me abstenho e deixo a minha mente decidir. Porque ainda é ela que decide. E apesar de ela estar a ferver no meio deste forno à escala interplanetária, ela já teve as miragens que tinha a coleccionar. Foram belas imagens de água engarrafada a saír de um frigorífico Ariston, e de um banho tomado em imersão, com jactos de água a corresponderem com precisão nos músculos das costas que mais necessitavam de relaxar.

Miragens, todos nós temos. Mas é quando assentamos o nosso belo, pequeno, grande ou majestoso cu no chão, bem lá no fundo, que sabemos onde estamos. E que nos apercebemos que a vida é um inferno e não um conto de fadas. E nessa altura, os que se safarão sem um arranhão serão os inteligentes, os perspicazes e os calculistas.

Isto claro, além dos que queimaram o rabo.

domingo, 9 de maio de 2010

[25] Circo

Quem olha para a actual situação deste País pequenino cheio de recantos adornados e magníficos imagina-se num teatro onde, numa mesa polida de mogno, vários palhaços se fazem passar por ministros. A única diferença para a realidade não reside nos palhaços. Reside no facto de que eles são mesmo, infortunadamente, os nossos ministros.

Onde se juntam em Conselhos de Palhaços, “tomando medidas” em relação às moedas que tilintam contra o mogno, como se não fossem deles. Pois, são nossas. Onde olham para as mesmas moedas e pensam que podem, com essas mesmas pobres moedas pretas, comprar uma mesa três vezes maior, de cedro japonês, abrilhantada por um vidro reflector emoldurado em ouro. E não podem mesmo! Curioso. Mas a mesa ficava tão bem ali! Querem comprar na mesma. Mas que podem eles fazer? Oh...pedem emprestado. E aí está uma mesa gira, sem moedas no meio.

O tempo passa e os palhaços acham que podiam comprar uns filtros para os pés da mesa. Ela está a fazer muito barulho. Que chatice. Quem manda o palhaço gordo estar sempre a mexer a perna? E também, são só uns filtros. É só mais um pequeno empréstimo. Diriam eles insignificante.

Entretanto, vendo que a situação se complica para os palhaços, um deles, que diz que percebe mais de trocos, vai à rua pedir alguns a uns transeuntes que passavam descontraidamente. Ninguém dá. Estranho. Então assalta-se. Já está. Um saquinho cheio de moedas para a mesa maior, de cedro japonês, abrilhantada por um vidro reflector emoldurado em ouro. Que podem os palhaços comprar agora? Talvez umas cadeiras a combinar com a majestosa mesa. Ou umas almofadas, para o rabinho dos palhaços não ficar marcado após horas de incansável dedicação.

Os palhaços são isso mesmo. Personagens cómicas e, ao mesmo tempo, burlescas, trabalhando para um circo que os aplaude e os reelege como palhaços principais. E eles continuam a divertir-se, a eles próprios e a nós, com corninhos e com “manso é a tua tia pá”, enquanto nós aplaudimos e gritamos “bis”.

Só pergunto. Que País..erm, peço desculpa, que Circo é este?

domingo, 2 de maio de 2010

[24] Ela

Ela. Ela é que me engana. Que me leva pelos caminhos errados com atitudes desmesuradas. É bela, mas nem por isso sublime. Nem muito esguia nem muito larga, roça a mais comum das formas. Mas gosto dela como ela é, até porque tal não se muda. Concentrada mas, por vezes, desviante, desconcentra-me daquilo que mais é essencial. Ela é teimosa, mas a moldagem ainda é um atributo que consigo concretizar. Impulsiva e comunicativa, nunca desiste de nada. Insiste em tudo o que é mais enriquecedor. Identifico-me com ela mas gostava de mudar certas coisas. Mas é isso que me fascina nela. A capacidade de querer sempre algo mais apesar de ver os carris do comboio e ler “fim da linha”. Orientar-me por ela é como segurar numa bússola com a guia partida. Posso não saber que caminho tomar, mas ela seguramente indicar-me-á um. Costuma dizer-se que elas, normais, têm qualquer coisa de excepcional. Se ela é normal? Acho que ninguém se consegue caracterizar como “normal” pela subjectiva definição do próprio conceito a ele associado. Não. Ela não é normal. É maluca também. Maluca até que ponto? De fazer qualquer coisa. “Qualquer”, como assim? Pense em “qualquer coisa”. Ok. Saltar dum arranha-céus? Sim, vejo-a a fazer isso. Ela é mesmo assim. Pronta a surpreender, e eu não posso dizer que sou um ser surpreendível. Não gosto quando ela mete aquele ar de calculista. Perigosa, antecipadora, controladora e perspicaz. Mas sinto-a na necessidade de o ser. Em determinado tipo de situações. E é por isso que a apoio.

Nem sempre a entendo. Ela faz-me pensar e pensar. Até perder o sono e encontrá-lo noutros recantos umas horas mais tarde. Faz-me palpitar o coração. Mas porque tem ela de me descontrolar desta maneira? Porque gosta de o ser. Porque está ligada a mim de uma maneira da qual eu não consigo separar, por mais que eu tente. Será que esse momento chega e sou capaz de me ver livre dela? Talvez sim, talvez não. Mas tudo o que escrevi não apoia a ideia de que realmente o quero fazer. Vêem? Ela descontrola-me.

Que tramada é ela. Que tramada é a minha cabeça.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

[23] Velha Guarda

Num dia caloroso e convidativo, uma senhora jovial, morena e impaciente mirava pela janela do seu quarto o Mundo que a rodeava. Nas ruas preenchidas por carros, pessoas, cães, respectivos dejectos e mesclas agoniantes de sons e aromas, observava o quão previsível e impetuoso o ser humano é. Como o senhor do 5º esquerdo que mudou de carro, como a rapariga do 3º direito que mudou de namorado, como a velha ranhosa dois prédios à frente comprou um canário para juntar à sua gaiola suja, como o merceeiro tinha um novo telemóvel touch-screen. Abanava a cabeça em discordância, enquanto coleccionava mais exemplos no mínimo, perturbantes.

Abandonou o quarto, dirigindo-se à cozinha e preparou um chá, daqueles que já se encontram com dificuldade por serem da velha guarda. Enquanto colocava as habituais duas colheres de açúcar, ligava a televisão para se distrair. Não durou dez minutos, absorvida por anúncios publicitários dobrados a partir de espanhol e soluções miraculosas para mudar a sua vida por apenas dois euros. Desligando a televisão, abandonou a cozinha e correu para o seu sofá, sentando-se. Meneando a cabeça, explodiu de inércia e ali se manteve. Pensando em como o ser humano é tão sedoso de mudança.

Porque tudo o que permanece, satura. Porque tudo o que inova, tem que ser comprado. Porque aquilo que não muda e que devia mudar, nunca mudará. Porque mesmo que se tenha algo bom, não se dá o devido valor até ao momento que se deixa de o ter. Porque é quando se quer mudar que raramente se consegue. Porque a vida tem mais valor se abrirmos os horizontes, onde haverá sempre alguém para os fechar por nós. Porque o risco só tem um lado visível, que é o mau.

Mas a senhora, agitando a sua chávena de chá já algo frio, tentava ver mais além. Via o Mundo como um único lugar de fascínios e oportunidades, onde o risco pode significar uma experiência inesgotável de karma e riqueza interior. Onde a vontade de mudar nos altera internamente para lutar por objectivos, provando a todos o nosso lado. Porque ter algo bom, é simplesmente “bom”.

E ela só queria que a velha ranhosa percebesse que o lado “bom” da casa dela era o periquito que já lá vivia há cinco anos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

[22] Vides

Acamado e tranquilo, um lenhador na casa dos noventa anos fixava o tecto pela quadragésima vez num espaço de horas. Sem nada para fazer e anafado pela solidão, sentia que tinha um caminho a percorrer, e não era levantar-se da cama e fazer jogging. Com a voz rouca e acenando devagar ao mordomo, pediu para chamar todos os elementos da família que em casa se encontravam. Pouco depois, e ordeiramente como um rebanho, um após o outro entraram no quarto, entreolhando-se num misto de surpresa e tristeza. O lenhador mantinha-se compenetrado e com um sorriso tímido nos lábios, perdendo-se no vazio. Quando os oito elementos, entre filhos, sobrinhos e netos, circundaram a cama, muitos deles fixavam o chão, receando o que iam ouvir. Entre sussurros e segredos, todos se calaram quando ele levantou a mão, chamando e falando ao ouvido do mordomo. Este, ao ouvir o que o lenhador pediu, assentiu, franzindo o sobrolho.

O mordomo pegou em oito vides, dando uma a cada um dos presentes. E depois de mais oito sobrolhos franzidos, o lenhador disse para todos partirem o ramo que tinham nas mãos. Com olhares denunciadores de um qualquer desequilíbrio mental do pobre senhor, estalaram pedaços de videira e facilmente todos ficaram com uma metade em cada mão.

Imediatamente a seguir, o mordomo pegou em mais oito, juntou-as e deu-as ao filho mais velho. Sem saber o que fazer com os oito ramos na mão, o lenhador pediu-lhe que os partisse. Contorcendo-se e cortando a mão, não conseguiu. Entregou o molho de vides com uma pequena mancha de sangue ao seguinte, não havendo ninguém capaz de quebrar o molho. O lenhador, sorridente, contemplava-os e esperou que todos terminassem. Pouco depois, falou:

“Será a última vez que vos falo. Eu sou uma das vides, cada um dos vocês também o é. Se nos mantivermos unidos, ninguém será capaz de nos aniquilar, destruir ou mesmo incomodar. Porque a nossa força está na união. E é na união que tudo se resolve.”

segunda-feira, 12 de abril de 2010

[21] Balança

A sala está escura. A pouca luz que se intromete neste espaço entra sorrateiramente pelas fendas de uma persiana desalinhada. No centro geométrico deste espaço, e por cima de um tapete persa poeirento, encontra-se uma mesa. Retocada, envernizada de 4ª demão e algo peneirenta. Ali se situa a fulcralidade da balança. Esta, com vários pesos em ambos os pratos, apenas meneia com a pequena corrente de ar que uma janela pode provocar. Amanhã, um peso que estava tão bem disfarçado num dos pratos, vai cair. Simplesmente sei disso. Mas não sabia, ou não me lembrava, ou não queria saber, ou não me queria lembrar. O peso vai cair redondinho na fenda que está aberta no chão madeirento e empestado de bichos. Até o encontrar nas tubagens ou nos interstícios da minha casa, poderão ser meses e meses de angústia. Mas a verdade é que o prato vai desequilibrar, e a imagem perfeita desta sala classicamente decorada vai ser alterada. Que posso fazer para a recolocar no devido local? Nada. Resta-me aceitar que a balança assim ficará.

Cada um de nós é uma balança onde pesos equilibram-nos afectiva, social, mental e psicologicamente. As circunstâncias da vida obrigam-nos a abdicar, a lutar, a viver e a amar os pesos que impavidamente preenchem os nossos pratos. Amanhã vou ver um cair da balança, que nunca pensei que pudesse ainda ter este tamanho. Mas a vida ensinou-me algumas coisas. E uma é que vou ter de olhar para os pesos que restarem, e num passo de magia torná-los maiores e mais pesados para que tudo fique como estava antes. Sim, porque ninguém falou em equilibrar os pratos. Isto porque muito poucos serão os que têm um total equilíbrio na sua balança num dado momento da sua vida.

Até porque a vida é um jogo de colocação e retirada constante de pesos. E esse jogo vicia-nos de tal maneira que, por vezes, perdemos alguns pesos e nunca mais os vemos.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

[20] Fatal Error

Errar é humano. Define aquilo que somos. Porque todos erramos. Porque muitos inteligentes aprendem com os erros e não voltam a repeti-los. Porque muitos burros não aprendem com os erros e voltam a cometê-los. E nesse caso o erro, todo sorridente e provocador, tira-lhes uma fotografia de alta definição, imprime-a e espalha-a pelas ruas como “o burro”. Quando errar é algo humano, a repetição torna-se pouco consciente, pouco transparente ou mesmo pouco realista. Como uma cicatriz que guardamos daquela queda de bicicleta de quando tínhamos 5 anos. E como nunca mais caímos, porque “quem sabe nunca esquece”, porque parecem gostar as pessoas de esquecer?

O primeiro erro fica como uma lição, o segundo fica como um exame falhado, o terceiro fica com muita tolerância como uma atitude insolente. E por aí adiante. O erro molda-nos, indica-nos o caminho e aponta-nos o que não fazer numa próxima vez. E a combinação de milhares de erros tornaram-nos nas pessoas que estão a ler este texto. Por exemplo, continuo a acreditar que não erro ao escrevê-lo, logo assim o continuarei a fazer.

Tento, acima de tudo, tirar uma lição de tudo isto. Errar faz parte da vida. Errar pode magoar quem mais nos ama e a nós mesmos. Porque enquanto actuamos segundo os nosso próprios valores, poderemos sempre ser entendidos por quem nos rodeia. Actuar perante uma névoa cinzenta de ideias pode simplesmente afugentar todas essas pessoas. E aí, a aprendizagem da vida não só vai ser mais difícil, como vai doer. E quem nos ama, nunca nos entenderá. Os únicos a entender serão os abutres que viverão na nossa cabeça e que nos consumirão dia-a-dia pela repetição do erro que, num dia solarengo, cometemos sem ter noção das suas consequências.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

[19] Revivalismos

Um beijo voa numa tempestade solarenga. Suspiros exsudam-se dos meus poros a um ritmo implacável. A brisa malévola que faz levantar as poucas folhas que ainda se encontram no chão penetra e seca um chão molhado. Penas de uma gaivota esquecida compenetram-se e fixam um anjo arrogante. O horizonte é rígido, mesclando teclas de um piano sem escala. E as imagens que guardei surgem como películas antigas e enevoadas. Como quem pega num brinquedo esquecido e se lembra de soprar o pó que o cobre. Como quem visita o baú no seu sub-consciente e se perde no labirinto que lá dentro se proporciona. Como quem visita esse labirinto e se apercebe que está a fazer de rato numa armadilha bem planeada. Como quem gosta de ser rato e se arrepende de o ser, tempo a tempo.

Dicotomias, parâmetros, avaliações, perspectivas. Raciocinar é trabalhar a mente para resolver problemas nunca antes questionados. Nostalgiar é trabalhar a mente numa atitude masoquista, vertebrada e insolvente. Esquecer é trabalhar a mente num processo de avaliação SWOT, identificando pontos fortes e fracos, problemas e fraquezas, e lidar com eles.

A nostalgia torna o nosso presente num revivalismo. Traz-nos boas e más memórias que nos prendem no nosso canto, olhando para trás e ainda mais para trás. Aquela pessoa, aquele local, aquela noite, aquela comida. Aquele tempo. Quando ser nostálgico é ser consciente e futurista é ser inconsciente, algo vai mal. Quando é no futuro que tudo reside, onde tudo será investido, onde qualquer pessoa PODE mudar algo. Então porque somos nós tão saudosos do passado e receosos do futuro? Porque somos nostálgicos. Porque somos masoquistas.

O engraçado passa por eu saber compreender tudo isto e, no fim, olho para mim e vejo-me noutro local, a comer algo diferente, com outra companhia e a divertir-me. E em que espaço temporal me vejo? Pois.

Também sou masoquista.

quarta-feira, 24 de março de 2010

[18] Alguém?

Ora, porque será que ninguém lê o que escrevo? Penso que uma das respostas possível passa por não me chamar José Castello Branco ou Bibá Pitta. Certos momentos de uma simples passagem minha por uma livraria tornam-se asquerosos ao ponto de pensar que o comum português só compra aquilo que está à vista no sacrificado mundo da televisão em prol de receitas financeiras astronómicas. Além disso, não só vejo os autores mais vendidos como o tipo de livros que aguçam a curiosidade. Senão reparem em alguns exemplos. “Como sair da crise” ou “Consigo fazer com que emagreça” são subtis desperdícios para a humanidade. Como Barack Obama e todos os líderes do G14 estão enrascados com o serviço, deviam ler um dos 50 livros intitulados “Como sair da crise”. Que insensatos.

Assumo que metade dos livros que geram boas receitas para os seus autores foram concebidos com esse mesmo propósito. Ou pensam que já não existem livros acabadinhos de lançar sobre o “bullying”? Claro que sim! Vai fazer uma pipa de massa, porque não param de surgir casos desses no Telejornal.

Autores como Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Eça de Queirós ou Bocage serão lembrados pela sua obra. Pelo que a sua genial mente conseguiu transmitir ao comum leitor que aprecia a boa escrita como transmissão de filosofias de vida. E exceptuando excelentes casos de escrita portuguesa, a maioria não será apenas mais uma gota neste oceano, mas mais uma moeda numa enorme algibeira.

Ninguém me conhece, ninguém me lê, mas abro a minha mente e digo o que penso. Nunca irei certamente reformular uma frase por possivelmente chocar alguém que a vai ler. Ou seja, alguém que possivelmente refutará a compra do meu livro. Alguém que não me dê dinheiro para mais um cappuccino num destes dias. Essa é a parte onde a escrita se torna verdadeira e pela qual admiro os autores dos livros que tenho acima da minha cabeça numa estante bem preenchida.

quinta-feira, 18 de março de 2010

[17] O Baloiço

Chego-me à frente e atrás num espaço de segundos. Da mesma maneira que consigo subir e descer patamares. Viajando no tempo. Redescobrindo sensações. Revivendo memórias. A nostalgia encrustada na minha pele permite-me mostrar um cínico sorriso amarelo. De uma altura em que tudo era perfeito e que nunca mais será. A saudade, tipicamente portuguesa de um modo sôfrego e pessimista, devia ver-se ao espelho. Vejo-me neste baloiço, sorrindo e lacrimejando papéis rasgados de uma foto tirada de quando eu não conseguia sequer segurar a máquina que a proporcionou.

Sinto-me mais realista, mais preparado para o Mundo. Tenho os pés bem assentes no chão. Quando era mais novo, bem me podia esticar, mas nunca alcançaria o chão sentado neste baloiço. Cresci. Física e mentalmente. Então porque receio mais o Mundo agora que antes? Talvez a pureza que vivia dentro de mim me fizesse voar. Livre e sem destino, num palco onde não havia bastidores e realizadores.

O meu coração continua a bater forte como sempre o fez. Bombeia emoções, vivências e imagens desfocadas. Bem rápido, como a criança que corre num pátio vazio atrás de algo que só ela consegue ver e identificar. Mesmo enquanto dorme, ele continua a alimentar os sonhos que me preenchem a alma.

Qualquer pessoa cresce e tem a capacidade de perceber o que se passa à sua volta. Assim o queira. Assim saiba usar a preciosidade que temos dentro da nossa cabeça. Uns melhor, outros pior. Não há duas pessoas iguais. Sem egocentrismos, todos nós somos únicos. Logo posso afirmar, com orgulho, que sou único neste Mundo enorme e complexo. Então porque pareço desesperar para que o baloiço ao meu lado, que sempre esteve vazio, seja finalmente preenchido?

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

[16] Horizontes

Certo dia, vagueva eu pelas ruas de uma cidade alemã cosmopolita quando, meneando a cabeça, avistei um velho vagabundo apoiado nos corrimãos de uma ponte, olhando para o rio ondulante e estrábico na mescla de sensações que transmite. Intrigou-me o passar do tempo, em como desperdiçá-lo desta maneira quando há tanta bela coisa para sonhar e realizar. Ali, quebrando parte da circulação sanguínea junto aos cotovelos, com os seus imundos e curtos cabelos ao vento importunando-lhe as orelhas, se mantinha. Impenetrável. Absorto. Compenetrado. Teimoso. Dono de si. E do seu mundo.

À medida que estes pensamentos se entranhavam em mim, permiti-me perder também algum do meu tempo e aligeirar-me numa cadeira metálica húmida num pequeno café à beira-rio. Observando-o. Tentei entrar na mente dele. No que pensaria, se em problemas, se em alegrias, se em frustrações, se em algo estúpido. Provavelmente seriam todos estes simultaneamente. Dei por mim a pedir um capuccino, bem quente, com dois pacotes de açúcar, à senhora pálida e jovial que me atendeu. Tratei de pagar logo, para não ter de esperar no momento em que decidiria seguir o meu rumo. Mas por ali fiquei. A imagem, digna de um quadro, ou pelo menos de uma fotografia (talvez a preto e branco), ficou guardada no meu sub-consciente e vejo-a por vezes como um flash na minha memória. Mas como não sou pintor, ou quanto muito fotógrafo de bolso, limito-me a preencher a minha mente com mais um bocadinho de uns segundos que achei bem guardar para mim mesmo. Temos de ter a capacidade de filtrar aquilo que nos ajudará a crescer. E de interpretar cada situação de acordo com o seu contexto.

O que será que pensou a empregada que me atendeu ao ver-me 45 minutos sentado no café a olhar para o mesmo local? Impenetrável. Absorto. Compenetrado. Teimoso. Dono de mim. E do meu mundo.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

[15] Tela Branca

Num trilho empedrado e poeirento, colunas de luz penetram por entre as folhas dos pinheiros, criando silhuetas disformes perspécticas. Entre duas delas, pegadas de umas botas lamacentas criam pares de perfis desalinhados e angulosos. Estas indicam um caminho, uma direcção para o indefinido, onde mesmo no topo daquele vale, tanto poderá aparecer um castelo medieval resplandecente como um enorme buraco negro.

A linha é recta, mas já dizia Derek Walcott que a linha recta é a distância mais chata entre dois pontos. O que significa ziguezaguear? Não necessariamente complicar. O que significa interromper a linha? Não necessariamente desistir. O que significa percorrer a linha em círculos? Não necessariamente ser estúpido.

A paisagem mais confrangedora e desoladora para uns pode ser a mais rica e esplendorosa para outros. Não existem duas mentes iguais. Cada uma toma as suas interpretações para si próprio. Cada uma tem de avaliar as consequências de atirar uma pedra para uma ribeira. Se vai ou não acertar com a dita pedra na cabeça de algum pato real, ou se simplesmente cria o belo desenho aquático circular em transparente e apática progressão para o vazio.

A vida oferece-nos experiências com as quais temos de crescer. Em tamanho e maturidade e energia e calculismo.

E excluindo o facto de a vida poder ser equiparada a uma linha, é essencial assumir e interiorizar que não existe borracha.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

[14] Destino

A incongruência do funcionamento do ser humano é tão complexa como inexplicável. Diria que aquilo que nós somos é uma total obra de arte que vai sendo preenchida ao longo dos anos por tintas e pincéis distintos. Estes podem assumir diversas tonalidades, mais ou menos robustas na atitude fascinada do pintor. Sempre associei a sequela da vida a um jogo onde, a cada nível, somos instruídos a estabelecer uma dicotomia no nosso cérebro entre duas portas. A vida limita-se a si própria como um conjunto de decisões, sequenciadas e entrelaçadas, onde cada um se obriga a lidar com as suas inerentes consequências.

Destino? Somente o dos comboios, barcos e aviões, entre outros. Esses estão impressos, num qualquer pedaço de papel reciclado, a tinta preta com letras extravagantes. São definidos na sua base existencial. O destino do ser humano não está impresso em qualquer lado. Não está dactilografado que A vai casar com B porque, dependendo dum equívoco, dum descuido ou mesmo duma estupidez do A, a B pode tomar a decisão de não concretizar o sonho de pais, avós, bisavós e trisavós em casar com A.

O ser humano é dono do seu próprio destino. Apercebo-me que existe uma grande blasfémia entre o que é destino e o que é uma coincidência. Esta última decorre de combinações estranhamente curiosas de decisões de diferentes seres humanos, que podem levar a que duas pessoas amigas de longa data permitam encontrar-se na mesma rua a 500 quilómetros de casa. Destino? Razoabilidade é tudo o que peço.

Nada mais evidente do que o caso de duas pessoas apaixonadas, vivendo a uma distância suficiente para que os pólos do íman que eles são não se toquem. Podem não se ver, não se tocar, não ouvirem a própria voz, mas a pequena aparição de um sinal, de uma imagem, reacendem a avalanche que é o nosso próprio interior. Aqui, poderíamos então, no sábio mito popular, afirmar que estariam destinados a estar juntos. Com certeza. Um ficará no seu sítio, estático como um calhau, e dirá à outra para fazer o mesmo. Não ficarão juntos.

O destino cria-se, o destino controla-se, o destino de cada um está nas nossas próprias manápulas. Construam o vosso próprio destino.

domingo, 3 de janeiro de 2010

[13] Escombro

A intempestuosidade do silêncio que zumbe nos meus ouvidos importuna-me como a prepotência inata dos que sabem que são mais fortes. Nesta sala escura, pequenos raios de luz projectam-se no solo de madeira podre impregnada de óleo e tinta seca lascada. As minhas mãos estão desidratadas e impelem movimentos curtos e firmes contra o ar rarefeito, num bombeamento cada vez mais intenso. Com os meus olhos cansados e negros, fechá-los significa o paraíso e abri-los significa o inferno em que estou. Então porque os mantenho abertos? Pensar na resposta faz com que as poucas restantes partes da minha cabeça que não latejavam até agora, tenham oportunidade de o fazer. Psicologicamente, fisicamente, emocionalmente e espiritualmente reduzido à insignificância do ser humano inserido num sistema controlador e escravizador, olho em meu redor e só consigo vislumbrar os tais raios de luz. Onde ando eu, que não me lembro de nada?

Vesgo como estou, nem me apercebi da tábua de madeira interrompida esporadicamente pelos malditos pedaços de luz natural. Deixando-me cair da cadeira onde estou, atinjo o chão com violência enquanto uma picada forte me percorre desde o cotovelo até ao dedo mindinho. Rebolando dentro dos possíveis, finalmente tenho a possibilidade de atingir a tábua, onde uma citação está inscrita a preto, como se queimada. Semi-cerrando os olhos, faço um esforço enorme enquanto controlo os meus impulsos em gastar as minhas últimas forças tentando sair ileso das cordas que me prendem. As tonturas tornam esta sala uma máquina de lavar a centrifugar. Não consigo mais. A minha cabeça embate no chão e uma dor aguda atravessa o meu ego como uma espada. Sem perceber porquê, um impulso arrebata-me e abro os olhos. A tábua estava mesmo em frente aos meus olhos, agora nítida e impetuosa, no seu odor maquiavélico a pinheiro queimado:

"Poder, o fruto mais apetecido. Prepotência, um dos seus maiores caroços."

Amarrado a uma cadeira no chão e cheirando o pó que calma e arrogantemente invade as minhas narinas, fecho os olhos e só desejo que quem aqui me colocou se engasgue em breve.