terça-feira, 29 de março de 2011

[44] Silêncio

Na escuridão de um quarto abandonado, o silêncio preenche os interstícios da minha alma. Petrificado pela gélida brisa que entra pela janela, um pequeno barulho insere-se nos meus tímpanos como ratos à procura de queijo fresco. Uma frágil luz azul-turquesa brilha no tecto, apesar de arrogantemente poderosa para distribuir uns poucos watts neste bocado de casa rocambolesca. Não muito longe de mim, um suspiro espalha-se no ar como pó soprado de um livro de fábulas de La Fontaine. Seguindo o seu trilho, mas esmagado pelo poder do silêncio que ainda se abatia nas minhas costas fui, pé ante pé, desafiar a cinética de um soalho destruído pelas traças que retiraram prepotentemente camadas de protecção.

Descobrindo a origem do suave suspiro, e intrigantemente inclinando-me na direcção do soalho, a simples rotação da minha rótula parece alterar uma paisagem sonora perfeita. Mas não posso deixar de a desafiar. Ao ajoelhar-me, o suspiro parece chamar-me como uma borboleta pedindo por ajuda para soltar as suas asas. A tentação de descobrir, de viver algo novo, de partilhar novas sensações, espezinha-me como um gigante adormecido de volta da penumbra.

Sentir os teus cabelos finos como crina de cavalo, a tua pele macia como uma pena esbelta e a tua tranquilidade a dormir apenas com um lençol apesar da gélida brisa, encantam-me. Quero acordar-te. Retirar-te desse descanso para te dizer que aqui estou, como nunca estive no meu consciente. Não posso fotografar, limitar-me-ei a tatuar tais segundos na parcela memorizável do meu cérebro.

E aqui se poderia dizer, meus caros, que já poderia acordar depois deste cenário de um conto de fadas. Pois, mas com algum orgulho, com alguma expectativa, vou dizer-vos: “Sim, agora posso ir dormir.”

domingo, 20 de março de 2011

[43] Low-Tech

Boa noite, meus senhores e minhas senhoras. Aquilo que acabei aqui de fazer foi a demonstração, forçada ou não, de um dos valores mais importantes da nossa vida. A educação. Poderia, apesar de tudo, redundar a minha pessoa e o meu pensamento enumerando uma infindável lista de valores humanos que, numa sequência robótica, gostaríamos que todos nós tivéssemos, para que o Mundo fosse um lugar feliz.

Mas não o seria. O Mundo não se rege por peças encomendadas a uma fábrica, para produzir modelos de seres humanos à nossa escolha. Se pudesse metaforizar, e certamente que o farei, esmurraria um pão o número de vezes suficientes para que restassem apenas migalhas. E nenhuma delas seria igual a uma outra. Tal como o ADN, tal como a impressão digital, falando de aspectos mais técnicos.

Lidar com pessoas é fácil. Conversar, beber, rir, ouvir, andar, beijar, chicotear. Afastando-me repentinamente de tendências sadomasoquistas, estabelece-se aqui outro parâmetro. Lidar com pessoas é difícil. Compreender, interpretar, aprender, memorizar, conjugar, agir. Acções como estas já podem ser mais dificilmente executáveis pelo comum dos mortais. E porque, anteriormente, referi a tecnologia, alguma razão haverá para que o iPad 2 já tenha surgido poucos meses depois do primeiro lançamento. Ou que o iPhone já vá na quarta versão. O problema é que os que apenas conseguem actuar segundo os parâmetros “fáceis de lidar” nunca se aperceberão que ainda são como um comum Nokia 3310. Que, por ser bom, ainda se mantém vivo, mas que não evolui porque não tem capacidade para tal. E onde nem uma actualização de software poderá salvá-lo da resignação.

A evolução faz parte da psique humana como a aprendizagem diária do que é a vida e do que ela tem para nos ensinar. E como não pode haver uma sequência robótica, resta-nos aplicar os valores que nos foram transmitidos e aqueles que adquirimos. Os que não conseguiram, esforcem-se que ainda vão a tempo. Os que não querem e que machucam os que podiam transmitir, resignem-se. Mas ainda têm uma solução. Telefonem para quem ainda tem um Nokia 3310. Ainda há alguns.