Sonolento, um pardal esvoaça na cauda de um arco-íris embriagado. As suas penas batem umas contra as outras, criando uma brilhante melodia. Tragos de luz ripostam contra o chão, iluminando pedaços de terra que esbracejam, esperançosos, por uma nova vida. Os abetos, alinhados perpendicularmente na herdade primaveril, balançam suavemente como folhas de papel. Pegadas ordeiras e calculistas definem um caminho. Para o abismo, para o sucesso. Para onde elas quiserem. Para uma barraca abandonada, circundada por plátanos. A taipa, velha e desgastada, reclama por novos donos, assinando por baixo com rachas sinusoidais. Dentro da casa, uma mesa e duas cadeiras de pinho. Húmidas, lascadas e abstractas.
Os protagonistas já lêem o guião. À volta da casa, faz-se um grande alarido. Incomodados com o cheiro melancólico a madeira putrificada, os responsáveis agitam e gesticulam na ânsia de gravar as cenas destinadas. Ao fracasso, ao desespero, ao quase-sucesso, à alegria, à orgásmica explosão de alegria. Torrentes de adrenalina circulam pelas veias de todos os que ali passam, envolvidos ou curiosos. Todos querem ver, tocar, ser mosca, interpretar, adivinhar. A cabine de maquilhagem, os holofotes macabros, a iluminação artificialmente obscura. Tudo a postos para pôr em prática tudo aquilo que foi preparado ao longo de anos a fio.
A verdadeira adrenalina passa pela ignorância especulativa de quem sabe que vai viver algo único sem saber exactamente o quê. A verdadeira emoção arrebatadora é a do inconsciente transformar cenários em conscientes repercussões da nossa vida. A verdadeira magia navega numa luta entre certezas, incertezas, emoções e memórias vividas e provavelmente repetidas. Saber a sua força, a sua fraqueza, a sua capacidade, a sua insolência. Insolubilidade é algo que não existe no meu dicionário. Basta haver uma mesa e duas cadeiras. Mesmo que cheirem a madeira putrificada.