terça-feira, 26 de abril de 2011

[47] Cenários

Sonolento, um pardal esvoaça na cauda de um arco-íris embriagado. As suas penas batem umas contra as outras, criando uma brilhante melodia. Tragos de luz ripostam contra o chão, iluminando pedaços de terra que esbracejam, esperançosos, por uma nova vida. Os abetos, alinhados perpendicularmente na herdade primaveril, balançam suavemente como folhas de papel. Pegadas ordeiras e calculistas definem um caminho. Para o abismo, para o sucesso. Para onde elas quiserem. Para uma barraca abandonada, circundada por plátanos. A taipa, velha e desgastada, reclama por novos donos, assinando por baixo com rachas sinusoidais. Dentro da casa, uma mesa e duas cadeiras de pinho. Húmidas, lascadas e abstractas.

Os protagonistas já lêem o guião. À volta da casa, faz-se um grande alarido. Incomodados com o cheiro melancólico a madeira putrificada, os responsáveis agitam e gesticulam na ânsia de gravar as cenas destinadas. Ao fracasso, ao desespero, ao quase-sucesso, à alegria, à orgásmica explosão de alegria. Torrentes de adrenalina circulam pelas veias de todos os que ali passam, envolvidos ou curiosos. Todos querem ver, tocar, ser mosca, interpretar, adivinhar. A cabine de maquilhagem, os holofotes macabros, a iluminação artificialmente obscura. Tudo a postos para pôr em prática tudo aquilo que foi preparado ao longo de anos a fio.

A verdadeira adrenalina passa pela ignorância especulativa de quem sabe que vai viver algo único sem saber exactamente o quê. A verdadeira emoção arrebatadora é a do inconsciente transformar cenários em conscientes repercussões da nossa vida. A verdadeira magia navega numa luta entre certezas, incertezas, emoções e memórias vividas e provavelmente repetidas. Saber a sua força, a sua fraqueza, a sua capacidade, a sua insolência. Insolubilidade é algo que não existe no meu dicionário. Basta haver uma mesa e duas cadeiras. Mesmo que cheirem a madeira putrificada.

domingo, 17 de abril de 2011

[46] Trilema

Um poeta esfomeado arrebatava a sua inspiração com um dicionário erudito quando esbarrou contra a sua própria muralha. A muralha era de basalto, compacto, robusto e imponente. Nem duas retroescavadoras conseguiriam derrubá-la. A força que o poeta aplicava na sua pena transformava uma emoldurada folha neo-clássica num rabisco amachucado por dois pombos à procura de milho. Antes que os pombos lá pudessem encontrar o que procuravam, pontapeou a folha para longe. Jogando as mãos à cabeça, e atirando alguns cabelos para a secretária de mogno, recostou-se na cadeira e respirou fundo. Olhou à volta, sentindo-se inútil na sua própria existência. Queria que os pombos lhe comessem milho na cabeça. Meneava a cabeça, ansiando por dormir apenas para poder sonhar que aquilo não estava a acontecer.

Não tinha sono. Logo, na pena voltou a agarrar. Iniciou uma viagem pela nova emoldurada folha neo-clássica. Estudou os prós. Estudou os contras. Vislumbrou utopias. Tornou-as passíveis de serem concretizadas. Falou consigo próprio. Discordou do seu discernimento. Criou um novo discernimento. Tornou o “porque não” numa interrogação em vez de numa afirmação. Tornou o “impossível” em “complicado”. Tornou o “arriscado” em “assumido”. A folha estava cheia de ideias, de assunções e de perspectivas imaginárias. O poeta esfomeado viu uma luz ao fundo do túnel. A luz provinha de uma brecha na sua própria muralha. A luz estava lá para ele, esbanjada por um machado ferrugento. Restava abrir ligeiramente mais a brecha para que ele lá pudesse entrar. Mas como? O poeta achava-se sem força para mais.

Mal ele poderia saber que assim que ele, decidido e frontal, se assumisse perante a sua muralha, que ela cairia em pedaços, para lhe provar que o arriscado é possível e que se pode perguntar “porque não?”. Mas acima de tudo, que se pode derrubar a nossa própria muralha sem precisar de duas retroescavadoras. Basta uma viagem ao nosso interior, para a concretizar no exterior. Seja lá onde for.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

[45] Buraco Negro

Estendido ao comprido na minha cama por fazer, miro o tecto lascado como se ali vislumbrasse o céu. A minha retina é arremessada ao tecto com projecções do meu subconsciente, onde identifico locais, atmosferas, tempos e pessoas muito distintas do meu círculo mais próximo. Na parede, o tiquetaque do relógio do tio Patinhas, que rola há quase tantos anos quanto eu, consegue sobrepor-se ao rosno raivoso do autocarro que aqui passa neste momento. A cadência do seu tiquetaquear marca o ritmo de uma vida. Marca a de todos. Mas marca a minha luta. A minha obrigatória destreza, coragem, suplício, pulso, raiva e determinação num capítulo destes.

O coração bate forte contra o colchão e levanta a minha roupa. Concentrando-me em dois ritmos, abano impavidamente a cabeça quando entendo que o coração bate duas vezes enquanto o tio Patinhas só avança um segundo. Ele quer pular bem daqui para fora, mas a segurança da caixa torácica fá-lo respingar, iniciando um calmo processo de resfriamento.

A cabeça dói. Refila entre lóbulos diferentes do cérebro. Ameaçam-se mutuamente, sob pena de castigo e de mais dor para eu aturar. Os lóbulos sobrepõem-se, afastam-se como moscas pulverizadas com veneno, chocam como socialistas com comunistas. Algo altera a minha visão, criando um buraco negro onde vejo o meu próprio coração entrar e afundar-se. Alucinações. Não quero. Não gosto. Fecho os olhos. Assim não verei nada. Bolas. Continuo a ver. Um olho de boi? Poliestireno extrudido? Galata? Tomada de decisão? Sete colinas? Abro os olhos. Um tecto.

Continuo deitado e acção é necessária. Mas o que sei que manterá a acção enquanto houver pilha, é o meu grande amigo tio Patinhas.