segunda-feira, 12 de novembro de 2012

[67] Relógio


Velocidades. De ritmo, de deslocamento, de pensamento, de decisão. O mundo que nos soterra é veloz e fugaz como uma pena disparada por uma ventoinha, mas também é suave e delicado na forma como a pena aterra no chão após o agressivo impulso. Ambas as coisas acontecem a velocidades totalmente diferentes, mas qual delas obteve mais encanto, mais impacto e beleza numa pintura rupestre para a eternidade? Não sabemos, porque o impulso que o mundo nos dá tem encantos diferentes para a velocidade a que nós queremos viver. E nem sempre podemos funcionar como nós queremos, por muito que especulemos sobre um determinado desfecho. Porque uma coisa é certa: o relógio nunca pára, nós é que temos de viver os momentos certos para que ele pareça correr mais depressa que nós. Um ligeiro efeito Matrix onde cada segundo é vivido e pensado e sentido e respirado como uma hora de encantos e sensações rejuvenescentes. Não serve de muito viver uma hora de maravilha para ser compensada com um mês de arrependimento, mas é melhor arrepender de algo que se fez do que viver apenas no nosso cérebro algo hipoteticamente exequível.

Os ritmos são marcados, tal como o compasso do piano. Podemos empurrá-lo com mais ou menos força, e dirigir a orquestra do nosso karma. Perde-se menos tempo a enviar uma sms a dizer algo, do que a pegar nos pés ou no volante e dizer in loco. Mas perdeu-se tempo? Para mim, ganha-se. Uma questão de ritmos. Os três segundos de envio através de redes e torres de emissão, transpostos numa deslocação, convite, transmissão de mensagem e de feedback. Mais lento, mas mais vivido, mais rico.

Há momentos que recordo, há outros que tenho a capacidade de projectar. Diferentes atitudes, mas com velocidades a roçar o caracol naquilo que é a plenitude da vida. Essa é a forma de encarar as coisas. Só isso faz sentido, só isso me faz mover. Encontrar a forma de correr mais devagar que o relógio. Sei que é raro de acontecer, mas quem ler raro pode pensar em improvável ou impensável. Eu prefiro pensar noutro sinónimo: possível.


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

[66] Chuva

Chuva. Criadora de paisagens reconfortantes e de ambientes intimadores. Ela bate na janela como que a pedir para entrar, ou como a dizer “estou aqui”, solitária e isolada. Vejo-a isolada no seu espaço, como eu que a miro pelo telhado deste prédio da época do Estado Novo. Água como penetrante em tudo o que é material, como ideias a impregnarem-se na minha cabeça decidida a não decidir o que decidir. A deixar-se levar se a estrada for descendente e a recuar se for ascendente, as minhas ideias progridem para a sua concretização se se assemelharem como imaginativas, mas não como retrógradas. Tiro uma fotografia a este vernáculo de física, comparando-o com tudo aquilo que nos rodeia. Memorizei a fotografia e desci até à rua, serpenteando por becos e deslizando por escadarias fora de escala. 

Por vezes, resta a cada um de nós, após a surpresa da inundação, vedar cada brecha com aquilo que nos forma: carácter, personalidade, mas também alguma flexibilidade. Porque, seja como for, haverá sempre algum local onde a água passará, num ponto fraco nunca antes pensado e calculado mesmo pelo mais competente dos engenheiros. E haverá sempre aquele ponto fraco que, depois de reparado, será sempre mais frágil que aquele que é infligido pela primeira vez. Mas quem nunca deixar entrar água também se manterá naïve numa sociedade de espertalhões.

Antes que cada um de nós se recuse a ir para a rua levar com chuva, convém saber onde entrará água, e onde, antes que qualquer outra coisa, poderá entrar chuva pela primeira vez, criando um arrepio assustadoramente agradável. Porque mais vale sair ensopado mas evoluído, do que com chapéu-de-chuva e ingénuo.  

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

[65] Predição

“A predição é muito difícil. Principalmente sobre o futuro.” Esta frase pertence a Niels Bohr, proferida no início do século XX. Apenas por si só, predizer já pressupõe uma vaticinação ou uma profecia. Mas tal raramente nos leva a um porto seguro, como vemos nas profecias sobre 2012. O facto de nos predizermos apenas nos leva a pensar num ponto actual onde qualquer um de nós se encontra, até a um outro ponto a uma certa distância após um determinado tempo. Um planeamento. Os melhores sempre se destacaram pela capacidade de antecipação e de conjectura do futuro, numa tentativa simulada de tentativa e erro em intervalos de horas, dias ou meses.

Como em tudo na vida, existem margens de erro e de descalabro. Os que se obcecam pelo planeamento do futuro, forçando-o. Os que o ignoram, deixando-se levar na corrente a caminho do riacho de ouro ou de lixo químico. Os que nem sabem o que é, derivando num mar sem ondas a caminho de ponto nenhum. Os que o encaram com ligeireza, e com possibilidades de ser surpreendidos perante ambos os prismas. Tanta pessoa, tanto futuro, tanta combinação improvável de magia ou de sombria e imaculável pobreza de espírito. O mundo em que vivemos baseia-se numa mazela de pobrezas de espírito onde algo brilhante nos surge esporádica e radicalmente.

Não há que forçar brilhos, não há que forçar futuros. Há que viver o presente, com capacidade de vaticinação. Há que enganar os planos e trocá-los de ordem. Mas acima de tudo, há que ter a noção se estamos em condições de vaticinar. Eu não estou. Logo, não vaticinarei sobre a minha vida e negligenciá-la-ei com todas as minhas forças, pronto a surpreender-me a ser surpreendido!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

[64] Pirâmide

Tão majestoso como o ar que respiramos, é o rol de sentimentos que conseguimos acumular dentro de seres tão pequenos como nós. Sentimentos capazes de mover montanhas, penínsulas, estátuas e promontórios. Imponentes como um basalto em bruto, suaves como uma pena a deslizar de uma ribanceira ao relento, curiosos como uma lebre a espreitar por uma duna inocente. Somos capazes de tudo e de nada, de alcançar limites, redefini-los e ultrapassá-los de novo, numa constante procura pela perfeição. Só o ser humano consegue ser destruído para se levantar de novo das cinzas, desprovidas de caridade e de compaixão.

Apenas me questiono, calmamente sentado na minha cadeira de escritório, onde não há cinzas, nem montanhas, nem estátuas. Isto paira tudo na minha cabeça, viajante e ilusionista, como sempre. Porque é a terminologia dos sentimentos tão traiçoeira? Mas, pior que tudo, porque confio eu nela? Talvez porque sou assertivo quando a uso. Tal não obriga outros seres humanos a fazê-lo. A terminologia da vida é complexa e baça, como um espelho mal lavado ao longo dos anos. Quanto mais usamos as palavras, mais elas se tornam usuais e facilmente banalizadas. Antes, um croissant era bolo para altos estratos da sociedade. Agora, dêem-me uma queijada, que fico mais bem alimentado. Quando me falavam em Chrysler, também imaginava um GT500 qualquer. Agora, está dentro das rotas citadinas ao alcance do comum dos mortais.

Hoje em dia, as bases das relações interpessoais na nossa sociedade podem basear-se numa estratosfera piramidal onde, de baixo para cima, podemos integrar o conhecimento de vista: superficial, possivelmente sem saber o nome; conhecimento de circunstância: partilha de experiências e curiosidades; empatia: identificação com personalidade e carácter, encaixe psicossocial; amizade: dar e receber, estar presente, ajudar, sacrificar; encantamento: estranheza, identificação de elos interiores comuns, princípio do degrau seguinte; amor: encantamento, amizade, empatia, sexualidade, unicidade, tolerância e descontrolo dos sistemas digestivo e circulatório.

Esta sequência de conceitos não foi retirada de um qualquer livro de filosofia de Jeremy Bentham. É algo meu, do meu ser psíquico e pensante. Agora, quando olharem para mim, seja numa secretária, seja numa montanha, digam-me em que degrau se encontram. Vai facilitar as coisas.

terça-feira, 17 de abril de 2012

[63] Elísios

Um sem-abrigo, deslavado e trapaceiro, deslizava pelas ruas de Paris. Pesado e antiquado na sua barba grisalha, aglomerava maus-olhados e indiferenças dos milhões que lhe passavam ao lado a caminho do triunfo. Do Arco do Triunfo, imperial e fanfarrão, a rematar uma magnífica transversal à Cidade-Luz. Os infindáveis cruzamentos com pessoas, carros e pombos denotavam análises superficiais a elementos ainda mais superficiais. Pessoas com carapaça mas sem recheio, com maquilhagem mas sem cara, com adorno mas sem conteúdo.

Certa vez, pastava junto a uma das pastelarias mais caras da Europa, quando se sentiu observado, perscrutado, sondado por um ser imponente, de passo largo e sonoramente agradável no contacto com a calçada desmazelada. O rasto que serpenteava deixava tragos de azevinho, folhas de abeto e aromas ciprestes, a tiquetaquear incandescência a caminho do Arco do Triunfo. Raramente teve a oportunidade desse mesmo vislumbre. Semana sim, semana não, carregava penosamente a sua mochila ao longo dos Campos Elísios, apenas para aumentar a probabilidade de encenar aquele salpico de grandeza, de estimular os seus sentidos para aquilo que dificilmente estará ao alcance do mais comum dos mortais.

As poucas vezes que os seus olhos brilharam ao encadeamento do comboio dourado, ele deixou ficar-se prostrado, de mão no queixo, a respirar bem fundo, na tentativa de sugar aquele trago de azevinho. Deslavado e trapaceiro, ele desmantelou a sua mente num processo ímpar e extravagante, na esperança de transformar sentidos em experiências, ambições em sorrisos, esperanças em navegações. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

[62] Dourado

Certo dia, certa noite, aperaltado até às orelhas, serpenteei por essas estradas sinuosamente desenhadas. A lua nova tornara uma paisagem inspiradora num conto de suspense. A brisa que se fazia sentir escorregava por entre os respiradores do carro, criando-me arrepios ao longo da minha coluna. As minhas mãos eram como porcas de segurança agarradas ao volante, tiquetaqueando ao ritmo de uma velha bateria rock. Inspirava fundo, explorando o meu subsolo, procurando o metal dourado que tornaria tudo exacerbadamente maravilhoso.

Quando dei a uma estrada sem saída e desliguei o carro, levantei-me emproado e ansioso, confiantemente reticente com os meus botões. Não havia razões para tal. Há que largar a carapaça da procrastinação, enfrentar o Adamastor que vive nas nossas cabeças, gritar bem alto no areal de uma qualquer foz que ele não existe. E o metal dourado, reluzente e brilhante que está no subsolo pode não só ser avistado, como conquistado, recolhido e afagado como num qualquer conto infantil. Sem delongas, sem remorsos, sem obstinações, o ser humano tem uma capacidade inegável de auto-superação. Considerem-me um optimista. Um utópico. Um ilusionista. A lua nova não me teria visto se eu assim não o fosse. O próprio Adamastor assim mo chamou e eu limitei-me a virar a cara àquele muro de Berlim e a rir da sua barba mal aparada.

Certo dia, certa noite, sorridente até às orelhas, deslizei por essas estradas rectas. A lua nova tornou um conto de suspense numa paisagem inspiradora. Expirei fundo, revendo o meu subsolo, onde contemplava o metal dourado que tornou tudo exacerbadamente maravilhoso.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

[61] Curvas

Siderado num promontório inspirador, carrego às costas o peso da responsabilidade. Ando cabisbaixo, à deriva num areal que era escaldante num passado recente. Miro os meus pés, cansados de andar, de percorrer, de instigar, de deixar pegadas no solo. Pegadas únicas, algumas inconsequentes, em círculos ou em oitos, terminando no mesmo velho e hipócrito lugar. Volto a olhar para um horizonte tão deserto quanto a minha tentação inesgotável de encontrar algo dentro de mim que ainda continua sem dar vida.

Locais passam, brilham e ofuscam no cintilar tão insignificante quanto uma estrela incandescente a milhões de anos-luz de distância. Marcas no presente, fendas do passado e um vislumbre do futuro que mantém a sua teimosia arrogante em me trair quando bem lhe apetece, criando vítimas injustas de um caminho indefinido. Por vezes, a vida torna-se de tal forma racional, que nos esquecemos de que o irracional existe. Que o irracional é uma ferramenta poderosa para abrir brechas numa mentalidade fechada, onde as fendas do passado são utensílios para cozinhar momentos temperados e saborosos.

Quero sair deste lugar, não quero mais oitos nem círculos, quero linhas rectas, sem carregar nas minhas costas as lágrimas de quem me fez curvar. Não quero sapatos nestes pés calejados. Quero caminhos com pedregulhos de basalto, de granito, quero mais marcas do presente. Quero subidas e descidas sem saber o que se esconde no topo ou no subsolo. Acima de tudo, quero não deixar de lutar por tudo aquilo que me move.

Mover, sem pestanejar, chorar, recolhendo a lágrima, sorrir, por ter aprendido. Arrepender por algo que tenha feito em vez de arrepender por algo que não tenha feito.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

[60] (Des)Acordo

Entrou 2012 e, com ele, uma espécie de (des)acordo ortográfico transportado a ferros nos últimos meses. Mensagens de discórdia, relutância e algum conformismo têm marcado um processo que, olhando para os seus limites, apenas se assume como estupidamente irrelevante.

A língua portuguesa que nos foi ensinada foi sujeita a um acordo onde nos é pedido “um esforço de adaptação a uma nova imagem gráfica”. A sobreposição da fonética ao grafismo é um erro comum que tem esventrado culturas e tradições, surripiado gerações que não sabem sequer falar, quanto mais escrever aquilo que dizem. Reformas bem mais importantes eram balões de oxigénio na nossa base linguística como esclarecer disparates gramaticais relevantes e presentes em noticiários informativos e jornais de excelência.

O acordo ortográfico coloca em causa o ensino da própria língua portuguesa, onde a eliminação das consoantes mudas questiona a conjuntura dos ditongos, ridicularizando a sua aprendizagem. Não se saberá explicar o porquê de “adoçante” e “adoção” terem, respectivamente, “O” fechado e “O” aberto. Entramos no espírito português moderno do “ser por ter de o ser”, sem se questionar, sem se ouvir a população, sem haver um equilíbrio que não nos torne ovelhas negras num paraíso de inúteis.

Sinto a minha língua esfaqueada por um soslaio de desenvolvimento moderno que não só não é moderno e descontextualizado, como também é dinamizador de preguiças e inculturas que desviam a nossa sociedade do seu rumo dia após dia.

PS: este artigo não foi escrito segundo o novo Acordo Ortográfico, e nunca o será.