segunda-feira, 14 de novembro de 2011

[59] Vazios

Passeava eu à beira-mar, molhando os calcanhares na areia ensopada, enquanto inspirava a brisa marítima que me preenchia o peito e o meu próprio ego. Radiante, estava curioso por verificar o caminho de pegadas que deixei para trás, apesar de sabiamente assumir que as ondas já as teriam devorado. Ao fundo, uma empresa de extracção de areias executava o seu trabalho neste período ventoso de Outono, abrindo uma gigante cratera numa paisagem que antes fora contemplada por pintores de uma escola de belas artes.

Por muito que esta empresa interrompesse o seu trabalho e reenchesse o buraco, a paisagem original nunca seria reposta. A alteração das condições iniciais tem os seus efeitos nefastos na criação de um momento único e diferente de todos os outros. O vazio que outrora se apoderou da paisagem nunca será restabelecido como os pintores de belas artes o interpretaram. Será uma marca na eternidade, uma sombra no vazio, um sopro numa tempestade tropical. Quando fiquei lado a lado com a cratera, anuí a cabeça em relutância perante o acontecido, mas com a certeza de que nada haveria a fazer. A sociedade que nos domina constrói vazios onde não deviam existir e preenche vazios que deveriam ficar intactos. Relembro os meus vazios, que nunca serão preenchidos com uma brita ou argila igual, mas com um qualquer areal escaldante de esperança. Onde uma moldagem escultural se apresenta ao serviço, imponente e rejuvenescida, na procura do brilho perfeito daquele pôr-do-sol que aparece nos quadros de belas artes.

Depois de ultrapassar a cratera, e tal como as minhas pegadas anteriormente, não olhei para trás. O modo de construir muralhas num vazio destruído é interpretar o vazio como a base estrutural de algo melhor.

domingo, 25 de setembro de 2011

[58] De Volta

O brilho das estrelas e do quarto minguante que a Lua moldava era o pano de fundo envolto na fogueira que eu acendera uma hora antes. Ao fundo, uma casa abraçava um riacho espampanante que reflectia as ínfimas realidades que ali se cruzavam. Com uma brecha da janela aberta, a melodia violinista parecia encaixar-se como uma matrioska naquele pedaço de terra. Eu, submisso, apenas sentia a fogueira arder. As lascas que pigarreavam eram como um fogo-de-artifício da vida, onde tudo tinha sido lançado ao ar e desperdiçado em todas as direcções, menos na correcta. Olhava para aquele fogo e via nele outro brilho. Não por ver algo brilhante a florescer, mas por ver algo cruel a esfumar-se por entre o aroma carbonizado que momentaneamente sombreava a Lua.

Lenta e fogosamente, dirigi-me a um “tu” qualquer em voz baixa. Aquele “tu” estava provavelmente a despedaçar-se na minha memória a um ritmo bem mais penoso e lento que aquelas labaredas. Porém, o fogo da minha memória pode ser mais lento, mas nunca deixará de ser fogo. Nunca deixará de queimar seja o que for. Nunca deixará de arranjar em amigos, acendalhas. Em paredes, um sopro. Em insónias, um ramo de silvas.

“Devolve-me as noites como esta. Onde olho à volta e vejo a minha pessoa, desenvolta e espirituosa. Devolve-me as noites solitárias, onde não tenho de pensar em mais ninguém que não valha a pena. Devolve-me todas as paixões esfaqueadas pelo teu fantasma. Devolve-me o teu amor, amor esse que nunca foi realmente dado. Devolve-me o tempo, perdido nos interstícios da minha juventude, que gastei da pior maneira. Devolve-me as forças que prendi na minha alma, evitando desistir de algo que nunca poderia ter. Devolve-me. Devolve-me.” 

terça-feira, 20 de setembro de 2011

[57] Navegando

Inebriante tarde de calor. Na possessa atmosfera que exsudava agonia nas centenas de pessoas que se alinhavam ao longo do porto, muitos leques e lenços dançavam na tímida brisa que ainda se fazia sentir. As garrafas de água transpiravam e suspiravam por uma sombra que tardava em aparecer. Os viajantes, ansiosos, verificavam os seus pertences e acessórios, consolando os familiares e amigos que, com a lágrima no canto do olho, antecipavam cenários de angustiosa espera. Eu estava ali, perplexo, indeciso entre abraçar rigidamente e acenar com leveza.

A poucos minutos de soar o gigante tufão abafado do navio, ainda mirava, a certa distância, aqueles dois com quem partilhei os meus problemas apenas três dias antes. Um estava irrequieto, respirava fundo e aprontava-se. Outra, mais rotinada nestas andanças, sorria e anuía em como tudo estava em ordem. Decidi seguir, paulatinamente, e esperar tomar a melhor decisão nestas sempre incómodas despedidas temporárias. A buzina soou, ruidosa, aguçando o bafo que circulava entre a minha t-shirt e o meu corpo. Ainda não me tinha despedido. Corri.

O abraço de confiança, perseverança e tranquilidade que passei ao primeiro, retribuí no beijo carinhoso de saudade, nostalgia e força interior à segunda. Mecânica e alternadamente, ambos subiram as escadas para o convés com vinte segundos de diferença. Ouviam-se gritos de incentivo, de adrenalina e de disfarçada inveja nos muitos que me circundavam. Os lenços, brancos como pombas, baloiçavam contra o aroma marítimo.

O segundo buzinão anunciou o inevitável. O marinheiro soltou as amarras e lentamente começou a afastar-se da doca. Lá em cima, todos acenavam numa última fotografia para rever num álbum de fotografias. Eu, cabisbaixo, preferi virar costas e afastar-me, para ver essa fotografia quando for impressa. Olhando para os bolsos, sussurrei: “Sejam vocês próprios. Confiem nas vossas capacidades. Isto vai passar num instante.” Não convencido, repeti: “Isto vai passar num instante.”

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

[56] Mentalista

Um homem na casa dos 40 anos pavoneava-se pelas ruas de uma pequena cidade transmontana. Vestido de fraque, quase passava a ilusão de vir de um casamento. Os seus passos eram leves e sumptuosamente agradáveis. Inspirava o aroma a azevinho com tal prazer que transpirava sintomaticamente alegria e pureza. Acenava às pessoas que passavam, despejando-lhes o seu melhor sorriso. Entrando no supermercado, enchia o carro com os artigos que tinha previamente escrito numa lista, completando mais uma missão. Chegando a casa, cozinhou o seu próprio jantar e, satisfeito, viu a sua série preferida. Quando chegou o momento de dormir, pegou no seu manuscrito e inseriu-lhe mais um risco. Sentia-se privilegiado por viver e queria que todos o soubessem.

A pequena história de um senhor que, à primeira vista, parece um tolo que sorri por tudo e por nada, é na realidade um senhor que, semanas antes, descobriu que tinha um aneurisma não-operável alojado no seu cérebro. Este senhor é a prova mais que clara de que viver é um privilégio e que, ainda que a outro nível, nunca sabemos quando nem como acaba. A vida torna-se, dia após dia, cada vez mais curta, e nós temos nas nossas mãos a capacidade de definir o seu rumo. Por conseguinte, este rumo define-nos como pessoas caracterizáveis e moldáveis.

Quando se deitou, o senhor voltou a reviver o medo de fechar os olhos sob risco de nunca mais os abrir. Reflectiu. Relembrou aqueles que mais ama. Orgulha-se de ter seleccionado as pessoas que realmente importam. Não as que passaram a ignorá-lo até saberem da sua morte num jornal local. Sim, as que estão ao seu lado, preocupados, como peças de um motor complexo. Sim, as que assumem na sua cara sorridente que se vestirão de fraque com ele. Não, aquelas que nem sabem o que dizer perante a situação. Ele sorriu e, confiante, fechou os olhos.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

[55] Ernest

Já dizia Winston Churchill que, mesmo durante os períodos mais negros da 2ª Guerra Mundial, lia um livro todas as noites. Ajudava-o a pensar. Sinistramente reflectindo, vejo que escrever me ajuda a pensar. Como tal, tenho algo em comum com um dos maiores nomes da História Mundial no que toca a literatura e a dinâmica cerebral. Mas quero encontrar algo com que me identifique totalmente. Ernest Hemingway, célebre escritor americano, disse que felicidade em pessoas inteligentes fora das coisas mais raras que conhecera. Concordo. Como escrever ajuda a minha mente a pensar, vou pôr esse exercício em prática para confirmar se concordo na totalidade com tal afirmação.

A inteligência é a faculdade de compreender dados ou acontecimentos, capacidade de raciocínio, de discernir o correcto do errado. Envolve concentração, raciocínio, tranquilidade e genética. Ou seja, ver uma sequência de cálculos num quadro e antecipar o terceiro passo posterior. Antecipação. Soa a calculismo. Não. Identificar a personalidade de uma pessoa através de um olhar instintivo. Perspicácia. Porque não?
Inteligência como capacidade ou talento? Inato ou adquirido, trabalhado? Defendo que é inata, com potencial desenvolvimento através do tempo com adequada estimulação cerebral. Saber identificar problemas. Matemáticos, filosóficos, amorosos. Misturar inteligência com o irracional-impulsivo? Perigoso. Saber identificar. Saberemos separar, agindo por um lado ou outro, como um chip que se liga e que se desliga? Não me parece.

Calma. O que tem isto a ver com felicidade? Tudo, a partir do momento em que uma pessoa, com livre arbítrio, perscruta, identifica e assimila boas opções e não segue o seu caminho. Tudo, quando duas pessoas têm atitudes diferentes no que toca à sua inteligência, desviando caminhos e inundando de cobardia os trilhos da felicidade que ali estão à sua mão.

Ok, Ernest. Sou inteligente e concordo na totalidade. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

[54] Bar

Circulo numa rua desprovida de cor e de ritmos. Marco a calçada à cadência de um compasso de um piano. Cheio de sede, entro num bar. O bar estava cheio de almas vazias. Tão vazias como um vácuo de sentimentos e preocupações. Vejo uma mesa livre e, quase sem olhar para o empregado, peço um café cheio. Desdigo-me e peço uma imperial. Sento-me e aguardo enquanto ouço os fanáticos ignorantes falar de futebol ao balcão. Ignoro-os, enquanto a imperial me é colocada à frente, fresca e convidativa num cinzento fim de tarde. No meu bolso, um pedaço de papel rasgado ainda lá morava de um recado incompleto de supermercado. Sempre com a minha caneta preta, começo a rabiscar.

Os meus traços são inconsequentes, circulam como formigas à procura do melhor bocado de pão abandonado. O padrão é abstracto e confuso. Bebo mais um trago da imperial. Penso um pouco. A discussão ao balcão passa para o tema da corrupção e da máfia no futebol. Engraçado. Continuo a rabiscar. Paro de rabiscar. Começo a escrever. O copo da cerveja molhou-me o papel. Raios. Que se lixe. Continuo a escrever. Assusto-me com o facto de alguém entrar e pensar que todos os que ali estão são almas vazias. Não me importo com isso. Sei o que sou. Saberei? Obviamente.

“Todos os dias carrego o teu peso. És leve, mas pesada demais para a minha cabeça. Engordaste com o teu chauvinismo e desapreço. Nem sequer gosto da imperial que sempre saboreei. Mas o que interessa isso? O teu confrangedor silêncio esmaga-me os ombros, esvazia-me a alma cheia de valores e corrói momentos mágicos. O teu sorriso insufla-me o ego, faz-me saltar que nem um louco e destaca-me numa multidão. Quanto custa a imperial, quero ir-me embora daq..” Riscando a última frase agressivamente, amarroto o papel e deixo-o no caixote do lixo enquanto volto a enfrentar a rua, agora ritmada pelos candeeiros que entretanto se acenderam a antecipar a longa e negra noite.

sábado, 13 de agosto de 2011

[53] Medos

Apoiava eu os meus braços num peitoril húmido, durante uma terna e morna noite de Verão, quando dei por mim a pensar. Justificar, diria eu melhor. Compreender o que pode moldar pessoas, sociedades, políticas e sistemas socioeconómicos. Como podem ser tomadas decisões tão difíceis sem, aparentemente, haver um arrependimento, um repensar ou um arrepio na espinha. Que força é capaz de nos mover massivamente de um modo inconsciente, mas ao mesmo tempo, decidido?
O verdadeiro combustível do planeta. A maior força alguma vez existente e que suplanta bombas atómicas ou sistemas nucleares, porque se antecipa a elas, é o medo. O medo é o moinho da religião, é a faísca que pode acender uma guerra, é muitas vezes a acendalha da fogueira a que chamamos amor, porque qualquer um de nós tem medo de ficar sozinho. O processo de construção de uma vantagem a partir de uma desvantagem pode passar pela identificação de ameaças a algo precioso para o lado intimidado, para que o moralismo e bons valores venham ao de cima, como um bom azeite num copo de água.

Amedrontar sociedades inteiras traz sempre benefícios a algum dos lados. Quem não se lembra das gripes das aves, da ameaça terrorista espalhada pelo Mundo, do vírus H1N1, da ameaça nuclear japonesa. Poderia aqui enumerar mais casos, onde foram criadas vantagens (em 100% delas, financeiras) onde havia desvantagens (opinião pública), a partir da identificação de ameaças (saúde pública, vidas humanas). Parece-me algo simples e evidente.

Fechei a janela, respirando fundo e franzindo um sobrolho. Sorri. Imaginei este texto a aparecer nas notícias, como um abrir de olhos para a sociedade. Somando um mais um, fazendo com que se tirassem as conclusões correctas. A médio prazo, as farmacêuticas e as fábricas de armamento iriam ter quedas de 200% nos lucros. Seriam convocadas reuniões extraordinárias do G12 com manifestações violentas no exterior dos edifícios. Hum, não. Eu levaria uma carga de porrada primeiro, assinando uma declaração em como assumia que tudo aquilo que eu havia escrito era falso. Pois. O medo.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

[52] Comodismos

Vejo impérios a desabar todos os dias. Impérios sentimentais assentes em colunas de palha, mascaradas de betão armado. Onde toda a base não é mais do que um bloco de gelo pronto a derreter à primeira discussão mais acesa. Onde um simples grito faz cair paredes presas por pregos. A fachada renascentista nada mais é que uma máscara temporária que rapidamente se transforma num bairro de lata recheado de facas prontas a serem distribuídas. As pessoas envolvidas, envenenadas pelo monstro da rotina, tornam-se azedas e impacientes.
Vejo impérios de um, dois, cinco e dez anos a ruir. Hoje em dia, as relações entre um casal são infectadas por arrogâncias insípidas e egocentrismos radicais. O casal está por estar, e se aguentar mais tempo, algo estará mal, algo mudou, algo transformou o que de tão bonito havia. Nunca nos questionamos o porquê de ter sido bonito antes, reduzimo-nos a discutir o fracasso que é agora. O que mudou? Obviamente, quem está entranhado.

O avanço de apenas uma geração muda tudo. Caminhamos num sentido onde o casamento será banalizado e temporariamente mesquinho, contrariando relações sólidas e construídas em conjunto, na geração imediatamente anterior à nossa. Caminhamos num sentido onde nunca mais haverá cartas de amor, haverá e-mails de amor. Onde entregar uma flor é uma “paneleirice”. Onde discutir por um garfo a mais na mesa é claramente justificado. Onde viajar ao outro lado do Mundo por alguém é uma maluquice. Onde dá mais jeito aqui ao pé de casa do que fora da cidade.

O problema passa pelo facto de as relações, hoje em dia, darem jeito. Enquanto tudo for cómodo, não será seguramente feliz. Porque o cómodo não faz brilhar os olhos, não faz rebentar o coração da caixa torácica, não faz corar, não faz ficar sem palavras. Eu sempre preferirei ficar sem palavras do que dizer “amo-te” quando não o sinto: o acto mais cínico, mais cruel e, infelizmente, o mais repetido hoje em dia na nossa sociedade.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

[51] Páginas

A constância com que abrimos e reabrimos o livro da vida mostra a nossa adaptabilidade perante novas situações e a nossa resistência perante capítulos passados. Proteger as páginas seguintes, brancas como cal, expectantes de serem preenchidas com contos de fadas, é um dever exigível, mas nem sempre exequível. Limpar o pó à capa, cuja cadência do seu título se altera de tempos a tempos, revela segurança e auto-confiança. Reler páginas antigas não significa necessariamente revivalismos inadequados. Pode engrenar facilmente como um manual de instruções sobre o que fazer ou não fazer.

A vida não tem manual de instruções. Vive de segundos, de terceiros, de horas, de “ora isto, ora aquilo”. Vive de decisões. A coragem é aplicada em cada uma delas. Em 99% delas, nem sequer nos apercebemos dela, como quando decidimos aguentar a urina antes de viajar, quando se podia terminar desde logo a tarefa. De certa forma, tal envolveu coragem. Como é óbvio, também envolveu preguiça.

A coragem mostra os “fortes” e os “fracos”? Teoricamente, sim. Mostra os “vencedores” e os “perdedores”? Teoricamente, não. Mostra, na prática, quem está disposto a assumir as suas convicções perante um cenário rocambolesco, afirmando-se no cenário de guerra como alguém prestes a dar o corpo às balas. Defendendo as suas ideias, os seus sentimentos e o seu próprio ego.

Olho em redor neste largo e profundo planeta e vejo homens com H grande. Não muitos. Hão-de se contar pelos dedos das mãos e dos pés. Tu és um deles. Aquilo que enfrentas é espinhoso. Requer coragem. Tu tem-na. E quem tem para enfrentar aquilo a que já te propuseste, superará seja o que for que estiver do outro lado do Cabo das Tormentas. Peito feito, respirar fundo, enfrentar, reagir, aprender e a seguir? Como sempre, virar a página branca e escrevê-la.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

[50] Flashback

O infinito ou o finito de 2012. Claramente não é a chave para um sonho que é bem pior que um puzzle. Onde é necessário tempo, que poderá ser a cura ou a doença. E nas entrelinhas, continuo à procura, de um quadro onde as boas f€stas entrarão e boas previsões se proporcionarão. Entretanto, o escombro que é o destino nada mais é que uma tela branca. Os seus horizontes meneiam como um baloiço onde alguém se martiriza com alguns revivalismos. Quando o seu cérebro der sinal de fatal error, algo terá que reequilibrar a balança da vida. Poderão ser umas simples vides, estilo velha guarda. Mas ela, tramada como é, não o deixará. Toda a vida é um circo, onde uma miragem de entretenimento nos preenche a alma de vez em quando. E mesmo que reunamos vinte e oito pessoas numa missão, haverá sempre pelo menos dois vultos a fazer o grito do Ipiranga, prestes a entrar num paquete que os leve para bem longe daqui. O problema é que tudo isso não passa de um vírus nas suas cabeças. A nulidade das suas acções vai mostrar o filtro que a árvore dos seus próprios ideais não deixou semear. Tal apenas se assemelhará a um fractal de assunções, onde até um polvo esfomeado se poderá vangloriar como genial. O bilhete para a sua fortaleza digital em low-tech seria um tiro no silêncio. Onde um buraco negro seria aberto, abrindo precedentes para um trilema preocupante de cenários improváveis. Palmilho a palmilho, havemos de decifrar este enigma. Mas para já, um flashback.

O enigma deste texto nem sequer se assume como tal. No parágrafo anterior, limitei-me a dar uma sequência (i)lógica a todos os cinquenta títulos dos textos que já foram escritos, incluindo este. Quem acompanhou, certamente se lembrará de algumas palavras-chave. Quem não acompanhou, certamente entenderá o nível de alucinação que este autor injecta em alguns computadores. Escrevo este texto, surpreendido por ter chegado tão longe com cinquenta textos, mas sedoso de outros cinquenta. Para quem me lê, e que segue a minha página, deixo aqui o meu agradecimento. São vocês que me fazem continuar esta saga. Obrigado.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

[49] Enigma

Enigma! Algo desenhado para ser decifrado por outrem. Adoro enigmas. Fazem a mente trabalhar no sentido mais puro e mais construtivo do raciocínio. A psicanálise, o estudo do inconsciente. Até onde seremos obrigados a escavar até ao nosso inconsciente para resolvermos um enigma? Até onde ligaremos o complicómetro, quando podemos ter a resposta à frente da nossa cara? O desafio de um bom enigma passa pelo total alheamento relativo à complexidade imputada na sua construção. É essa curiosidade que dispara os nossos neurónios para umas boas horas de divertimento ou de total frustração.

Paradoxo! Divertimento ou frustração? Realidade ou fantasia? Acordar ou adormecer? Amor ou ódio? E que dois, estes. Aqui entra o discurso das “linhas ténues”. Com que razão podemos nós definir espaçamentos tão distintos entre conceitos? Da fantasia à realidade, muita água passa. Do amor ao ódio, uma gota de uma torneira mal fechada pelo senhor que não lavou as mãos como devia. Ou seja, temos aqui um paradoxo especial. Diferente de todos os outros. Porquê? Porque é mesmo assim.

Irracional! “Porque é mesmo assim?” Calminha. Clara ausência de explicação empírica e formatada, efectuada por via de relatório entregue a um superior. Ok. Não tanto. A racionalidade não implica entrega de relatórios, mas implica uma sequência lógica de pensamentos com deferimentos conclusivos e claros. Quem lê tal coisa, assume agora que a irracionalidade é um monstro peganhento e assustador. Não. A irracionalidade de muitos já fez mover muita água na melhor direcção. Irracionalidade como irreverência. Irreverência essa que explode dentro de mim neste momento, tentando decifrar o meu enigma.

O amor. Muitos já o definiram à sua maneira. Eu vou assumi-lo como um enigma eterno. O amor é o enigma que suplantará tudo e todos pelo carácter paradoxal da sua própria irracionalidade.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

[48] Palmilho

Inspiro fundo. Reconheço um ar que não é meu. Absorto. Compenetrado, viso a linha do horizonte como se o fim do mundo se tratasse. A brisa marítima que engole as minhas órbitas é fresca e seca como uma ventoinha enferrujada. Palmilho um caminho que não é meu. Porém, não deixa de ser uma pegada com o meu ADN. Rodopio de braços abertos como um patriota desconsolado. Grupos de pessoas cruzam o olhar comigo, desconfiadas. Falando com os meus botões, mando-os dar uma volta e, como não o fazem, dou-a eu. Devoro quilómetros como traças num roupeiro bem frequentado. A velocidade com que ando faz-me questionar se duas pessoas estão a empurrar-me pelas costas. Paro. Olho para trás. Apenas eu. Quem mais? Que estupidez. É apenas ela.

Suado e com o meu casaco pendurado no meu dedo anelar, atraco num banco quezilento circundado de margaridas, que não é meu. Descanso por uns segundos, antes de massacrar o meu interior com mais umas centenas de passos. Limpo o suor com a parte de trás da minha mão esquerda. Gotas de consolo. De inconformismo. De coragem. De agradável devaneio. O sol encandeia. Apressa-se por desaparecer por baixo daquele palito inflamável, que tanta água tem. Desafia-me a acompanhá-lo. Não quero. Algo me faz estar ali. É apenas ela.

Deitando-me numa cama de um quarto que não é o meu, já com o candeeiro aceso, duvido que a este se possa chamar o “descanso do guerreiro”. Não estou numa batalha. Estou numa encruzilhada comigo mesmo, onde não há como voltar atrás. Nunca há. Limpo as poucas lágrimas que caem com a parte de trás da mão direita. Gotas de saudade. De felicidade. De carpe diem. Aperto as mãos, uma contra a outra, unindo o suor com as lágrimas que me escorreram pela face. Alguém separou as minhas mãos e pediu um abraço. Assustado, olho para o lado. Mas não há razão para tal. É apenas ela.

terça-feira, 26 de abril de 2011

[47] Cenários

Sonolento, um pardal esvoaça na cauda de um arco-íris embriagado. As suas penas batem umas contra as outras, criando uma brilhante melodia. Tragos de luz ripostam contra o chão, iluminando pedaços de terra que esbracejam, esperançosos, por uma nova vida. Os abetos, alinhados perpendicularmente na herdade primaveril, balançam suavemente como folhas de papel. Pegadas ordeiras e calculistas definem um caminho. Para o abismo, para o sucesso. Para onde elas quiserem. Para uma barraca abandonada, circundada por plátanos. A taipa, velha e desgastada, reclama por novos donos, assinando por baixo com rachas sinusoidais. Dentro da casa, uma mesa e duas cadeiras de pinho. Húmidas, lascadas e abstractas.

Os protagonistas já lêem o guião. À volta da casa, faz-se um grande alarido. Incomodados com o cheiro melancólico a madeira putrificada, os responsáveis agitam e gesticulam na ânsia de gravar as cenas destinadas. Ao fracasso, ao desespero, ao quase-sucesso, à alegria, à orgásmica explosão de alegria. Torrentes de adrenalina circulam pelas veias de todos os que ali passam, envolvidos ou curiosos. Todos querem ver, tocar, ser mosca, interpretar, adivinhar. A cabine de maquilhagem, os holofotes macabros, a iluminação artificialmente obscura. Tudo a postos para pôr em prática tudo aquilo que foi preparado ao longo de anos a fio.

A verdadeira adrenalina passa pela ignorância especulativa de quem sabe que vai viver algo único sem saber exactamente o quê. A verdadeira emoção arrebatadora é a do inconsciente transformar cenários em conscientes repercussões da nossa vida. A verdadeira magia navega numa luta entre certezas, incertezas, emoções e memórias vividas e provavelmente repetidas. Saber a sua força, a sua fraqueza, a sua capacidade, a sua insolência. Insolubilidade é algo que não existe no meu dicionário. Basta haver uma mesa e duas cadeiras. Mesmo que cheirem a madeira putrificada.

domingo, 17 de abril de 2011

[46] Trilema

Um poeta esfomeado arrebatava a sua inspiração com um dicionário erudito quando esbarrou contra a sua própria muralha. A muralha era de basalto, compacto, robusto e imponente. Nem duas retroescavadoras conseguiriam derrubá-la. A força que o poeta aplicava na sua pena transformava uma emoldurada folha neo-clássica num rabisco amachucado por dois pombos à procura de milho. Antes que os pombos lá pudessem encontrar o que procuravam, pontapeou a folha para longe. Jogando as mãos à cabeça, e atirando alguns cabelos para a secretária de mogno, recostou-se na cadeira e respirou fundo. Olhou à volta, sentindo-se inútil na sua própria existência. Queria que os pombos lhe comessem milho na cabeça. Meneava a cabeça, ansiando por dormir apenas para poder sonhar que aquilo não estava a acontecer.

Não tinha sono. Logo, na pena voltou a agarrar. Iniciou uma viagem pela nova emoldurada folha neo-clássica. Estudou os prós. Estudou os contras. Vislumbrou utopias. Tornou-as passíveis de serem concretizadas. Falou consigo próprio. Discordou do seu discernimento. Criou um novo discernimento. Tornou o “porque não” numa interrogação em vez de numa afirmação. Tornou o “impossível” em “complicado”. Tornou o “arriscado” em “assumido”. A folha estava cheia de ideias, de assunções e de perspectivas imaginárias. O poeta esfomeado viu uma luz ao fundo do túnel. A luz provinha de uma brecha na sua própria muralha. A luz estava lá para ele, esbanjada por um machado ferrugento. Restava abrir ligeiramente mais a brecha para que ele lá pudesse entrar. Mas como? O poeta achava-se sem força para mais.

Mal ele poderia saber que assim que ele, decidido e frontal, se assumisse perante a sua muralha, que ela cairia em pedaços, para lhe provar que o arriscado é possível e que se pode perguntar “porque não?”. Mas acima de tudo, que se pode derrubar a nossa própria muralha sem precisar de duas retroescavadoras. Basta uma viagem ao nosso interior, para a concretizar no exterior. Seja lá onde for.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

[45] Buraco Negro

Estendido ao comprido na minha cama por fazer, miro o tecto lascado como se ali vislumbrasse o céu. A minha retina é arremessada ao tecto com projecções do meu subconsciente, onde identifico locais, atmosferas, tempos e pessoas muito distintas do meu círculo mais próximo. Na parede, o tiquetaque do relógio do tio Patinhas, que rola há quase tantos anos quanto eu, consegue sobrepor-se ao rosno raivoso do autocarro que aqui passa neste momento. A cadência do seu tiquetaquear marca o ritmo de uma vida. Marca a de todos. Mas marca a minha luta. A minha obrigatória destreza, coragem, suplício, pulso, raiva e determinação num capítulo destes.

O coração bate forte contra o colchão e levanta a minha roupa. Concentrando-me em dois ritmos, abano impavidamente a cabeça quando entendo que o coração bate duas vezes enquanto o tio Patinhas só avança um segundo. Ele quer pular bem daqui para fora, mas a segurança da caixa torácica fá-lo respingar, iniciando um calmo processo de resfriamento.

A cabeça dói. Refila entre lóbulos diferentes do cérebro. Ameaçam-se mutuamente, sob pena de castigo e de mais dor para eu aturar. Os lóbulos sobrepõem-se, afastam-se como moscas pulverizadas com veneno, chocam como socialistas com comunistas. Algo altera a minha visão, criando um buraco negro onde vejo o meu próprio coração entrar e afundar-se. Alucinações. Não quero. Não gosto. Fecho os olhos. Assim não verei nada. Bolas. Continuo a ver. Um olho de boi? Poliestireno extrudido? Galata? Tomada de decisão? Sete colinas? Abro os olhos. Um tecto.

Continuo deitado e acção é necessária. Mas o que sei que manterá a acção enquanto houver pilha, é o meu grande amigo tio Patinhas.

terça-feira, 29 de março de 2011

[44] Silêncio

Na escuridão de um quarto abandonado, o silêncio preenche os interstícios da minha alma. Petrificado pela gélida brisa que entra pela janela, um pequeno barulho insere-se nos meus tímpanos como ratos à procura de queijo fresco. Uma frágil luz azul-turquesa brilha no tecto, apesar de arrogantemente poderosa para distribuir uns poucos watts neste bocado de casa rocambolesca. Não muito longe de mim, um suspiro espalha-se no ar como pó soprado de um livro de fábulas de La Fontaine. Seguindo o seu trilho, mas esmagado pelo poder do silêncio que ainda se abatia nas minhas costas fui, pé ante pé, desafiar a cinética de um soalho destruído pelas traças que retiraram prepotentemente camadas de protecção.

Descobrindo a origem do suave suspiro, e intrigantemente inclinando-me na direcção do soalho, a simples rotação da minha rótula parece alterar uma paisagem sonora perfeita. Mas não posso deixar de a desafiar. Ao ajoelhar-me, o suspiro parece chamar-me como uma borboleta pedindo por ajuda para soltar as suas asas. A tentação de descobrir, de viver algo novo, de partilhar novas sensações, espezinha-me como um gigante adormecido de volta da penumbra.

Sentir os teus cabelos finos como crina de cavalo, a tua pele macia como uma pena esbelta e a tua tranquilidade a dormir apenas com um lençol apesar da gélida brisa, encantam-me. Quero acordar-te. Retirar-te desse descanso para te dizer que aqui estou, como nunca estive no meu consciente. Não posso fotografar, limitar-me-ei a tatuar tais segundos na parcela memorizável do meu cérebro.

E aqui se poderia dizer, meus caros, que já poderia acordar depois deste cenário de um conto de fadas. Pois, mas com algum orgulho, com alguma expectativa, vou dizer-vos: “Sim, agora posso ir dormir.”

domingo, 20 de março de 2011

[43] Low-Tech

Boa noite, meus senhores e minhas senhoras. Aquilo que acabei aqui de fazer foi a demonstração, forçada ou não, de um dos valores mais importantes da nossa vida. A educação. Poderia, apesar de tudo, redundar a minha pessoa e o meu pensamento enumerando uma infindável lista de valores humanos que, numa sequência robótica, gostaríamos que todos nós tivéssemos, para que o Mundo fosse um lugar feliz.

Mas não o seria. O Mundo não se rege por peças encomendadas a uma fábrica, para produzir modelos de seres humanos à nossa escolha. Se pudesse metaforizar, e certamente que o farei, esmurraria um pão o número de vezes suficientes para que restassem apenas migalhas. E nenhuma delas seria igual a uma outra. Tal como o ADN, tal como a impressão digital, falando de aspectos mais técnicos.

Lidar com pessoas é fácil. Conversar, beber, rir, ouvir, andar, beijar, chicotear. Afastando-me repentinamente de tendências sadomasoquistas, estabelece-se aqui outro parâmetro. Lidar com pessoas é difícil. Compreender, interpretar, aprender, memorizar, conjugar, agir. Acções como estas já podem ser mais dificilmente executáveis pelo comum dos mortais. E porque, anteriormente, referi a tecnologia, alguma razão haverá para que o iPad 2 já tenha surgido poucos meses depois do primeiro lançamento. Ou que o iPhone já vá na quarta versão. O problema é que os que apenas conseguem actuar segundo os parâmetros “fáceis de lidar” nunca se aperceberão que ainda são como um comum Nokia 3310. Que, por ser bom, ainda se mantém vivo, mas que não evolui porque não tem capacidade para tal. E onde nem uma actualização de software poderá salvá-lo da resignação.

A evolução faz parte da psique humana como a aprendizagem diária do que é a vida e do que ela tem para nos ensinar. E como não pode haver uma sequência robótica, resta-nos aplicar os valores que nos foram transmitidos e aqueles que adquirimos. Os que não conseguiram, esforcem-se que ainda vão a tempo. Os que não querem e que machucam os que podiam transmitir, resignem-se. Mas ainda têm uma solução. Telefonem para quem ainda tem um Nokia 3310. Ainda há alguns.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

[42] Fortalezas

Os tempos marcam posições, reflectem ideais e deixam marcas de água incrustadas numa sociedade que, ao longo dos séculos, tem sido capaz de mostrar aquilo que é correcto. E por mais persistente que seja a ideia, ou conservador o regime, ou ditatorial o homem-forte de um país, todas as fortalezas de poder caem. Caiu o Império Romano, caiu o III Reich, caiu Mussolini, caiu Salazar. Caiu mais recentemente Mubarak no Egipto, pontapeado por uma população em fúria que pararia um país inteiro no tempo enquanto o seu contestado líder não fosse exilado. Fica a clara ideia de que, por mais intransigente que seja a personalidade de uma só pessoa, a justiça vem ao de cima e outros interesses se sobrepõem a um capricho criado num cérebro ávido de poder.

A cedência, transposta para o nosso dia-a-dia, molda as pessoas que somos. Uma cedência não nos torna corações de manteiga. Nenhuma cedência não nos torna vilões até ser provado o contrário. A evolução do ser humano passa pela adaptação da fugaz realidade que criamos filosoficamente ao longo do nosso crescimento. Quem se recusar a aceitar novos ideais, será espezinhado na multidão que foge em pânico de um recinto de espectáculos em chamas. Pode ser capaz de se levantar, pode não o ser. Quem se levantar, estará mais aberto a aceitar a dureza da vida. Porquê? Pelo óbvio. Porque já sofreu na pele com uma bota da Timberland.

Todas estas situações, apesar de absurdas, são infinitamente recorrentes no mundo actual. Relembrando num passado recente, o macabro aumento de arrombamentos de portas trancadas após ter sido encontrada uma senhora falecida numa casa abandonada anos e anos depois. O desleixo apenas é curado com a tragédia. Para passar a ser uma anedota.

Eu cedo. Não sou coração de manteiga. Não sou vilão. Não sou espezinhado. Não arrombo portas. Mas também não as tranco.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

[41] Bilhete

Um bilhete debaixo da porta poeirenta. Silêncio. Curvo-me, esperançoso. Sem remetente. Sem destino. Um esgar de desconfiança. Um brilho nos olhos. Um rasgar cortante no vazio. Restos a caírem no soalho. Um convite indiscreto. Provavelmente desmesurado. Certamente tentador. Indubitavelmente intranquilo. Uma chávena de café quente. Duas colheres de açúcar. Um golo com duas frases lidas. Uma pausa para outras três. Incredulidade com um tremor nas minhas mãos ásperas. Um sofá. Não posso ler isto de pé. Arrebatador mas confuso. Revolucionário mas escondido na trincheira. Saudoso mas mascarado. Alegre mas convencido.

A fortuna da vida traz-nos momentos em que aquilo por que sempre pensámos esperar pareça redundante no momento em que não o devia ser. A impaciência de anos transforma-se em insignificância, pelas muralhas que resistiram ao dia-a-dia comum. A expectável felicidade de certo momento reduz-se ao modo de como a tornar possível, secundarizando-a. A inércia que atinge o nosso ego no momento em que as nossas moléculas deviam estar drogadas de adrenalina é intrigante. Mas como corrigir tudo isso? Que raio de seres somos nós?

Já me esquecia do bilhete. Escrito à mão. Caligrafia irreconhecível. Mas arriscaria feminina. Sem data de envio. Escrito há anos? Não me parece. Actual. Ponto final. Penso em algo que faça sentido. O café acabou. Não, nada disso. Objectivo? Não sei. Talvez saiba. Talvez o tenha à frente dos meus olhos. Mas não quero acreditar nele. Conteúdo? Algum. Arrasta-me para dentro do papel. Muito, então. Quero responder. Não tem remetente. Isso já sabia. Inconsequente. Amachuco o bilhete. Atiro-o. Em cheio na jarra japonesa. Volto a apanhá-lo. Desembrulho-o. Quero saber. O remetente? Não.

Quero saber como destruir o bilhete. Rasgando? Mutilando? Queimando? Não. O bilhete. Aquele que, após eu o ter lido, já estava guardado na minha memória para a eternidade.

sábado, 22 de janeiro de 2011

[40] Genial

Toda e qualquer acção relacionada com arte trás, consigo atrelada, a palavra “criatividade”. Uma originalidade inventiva testemunhada e avaliada pelo público-alvo, que tanto a pode colocar no pedestal como engoli-la sem apelo nem agrado. A máquina trituradora a que, mais formalmente, chamamos sociedade, define as suas tendências artísticas e culturais por movimentos massificados. E aí, o papel do artista e de meses infindáveis de suor e neurónios queimados chega ao fim como quem estala os dedos. O artista falhou. Porquê? Por não ser criativo? Não. Por não ser original? Não. Infelizmente, a criatividade do artista tem dois caminhos. Ou se adequa à limitação intelectual da sociedade e se restringe a ela, ou abarrota-a abrindo uma pequena brecha nesse muro de Berlim, incutindo uma nova ideia e abrindo novos caminhos. Como todos sabemos que a segunda opção apenas acontece em 1% dos casos, é triste verificar que a originalidade do artista está subjacente como “a ideia de um maluco”.

Procuremos novos caminhos para alcançar os nossos objectivos. Quem se cingir ao Mundo existente e o continuar a proclamar como extraordinário irá ser substituído no futuro, como uma peça estragada de um carburador de um Ford 300 em enferrujamento. Originalidade é motivo de questionamento, curiosidade e motivação. Criatividade é sonho, engenho e auto-confiança.

Não vivo sem criatividade. Vivo imaginando, nos recantos do meu ser, como seria eu sem imaginação. E em todos os casos, acabo morto. Vivo criando, entre os meus neurónios, cenários passíveis de serem concretizados. A realidade que vivo é limitativa e insuficiente perante a possibilidade maquiavélica de perspectivar o passo seguinte. Podem chamar-lhe criatividade ponderada, mas brindo a ela com todas as minhas forças.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

[39] Esfomeado

Fugaz e inolvidável. Uma lágrima ardente escorria-te pela face requintada, numa noite chuvosa e ritmada por tragos de luz incandescente. Voltavas costas, penosamente, enquanto me prostrava sentindo a água me percorrer o pescoço em fios ondulados a caminho do abismo. O meu rosto fechou-se em copas, pensando em espadas e vislumbrando ouros. Cada vez ias mais longe e era a minha altura de virar costas. A minha teimosia não me fez rodar os pés ensopados, e continuava a mirar uma das palmeiras do meu oásis. A minha consciência anunciava, tal amola-tesouras, uma constipação, bronquite ou repugnante faringite. No entanto, facilmente passaria uma semana penosa e febril na cama, desde que estes miraculosos segundos fossem vividos na sua plenitude. Mal te reconhecia o vulto, mas os meus olhos sentiam o teu respirar. Os meus ouvidos ainda ouviam a tua voz doce, entrelaçada com gotas de água a ribombar contra asfalto de má qualidade. Um trovão soava ao longe, mas maior era o que soava no meu subconsciente. Deixei de te ver e aí soube que se iniciava um novo ciclo. Onde apenas a memória perduraria. O cérebro teria de criar a tua imagem na minha cabeça para que eu te pudesse ver. Teria de esperar que os meus sonhos fizessem umas paragens nos bons velhos tempos. Onde convivíamos e desabafávamos enquanto víamos as folhas de Outono cair através da janela. Onde discutíamos a nossa vida ao ritmo orquestral de garrafas de meio litro de cerveja.

Chego ao dia de hoje e estás longe. Bem mais do que o trovão que na altura rebentou umas boas escalas de decibéis. Vives um mundo e eu limito-me a imaginar outro. Concretizas ambições enquanto eu continuo a coleccioná-las, tal caderneta de cromos. Nós podemos fazer o que bem entendermos, que eu posso fazer os meus olhos sentir o teu respirar, posso fazer os meus ouvidos reconhecer a tua voz doce. E, quando nos reencontrarmos, tudo vai parecer como um velho encontro de vizinhos que tomam café regularmente. Onde iremos ver as folhas de Outono cair e beber de meio em meio litro de cerveja.

A amizade é o melhor sentimento que se pode ter. Alimentada, torna momentos a valerem por uma vida. Esfomeada, pode tanto valer muito pouco, como valer bem mais do que a alimentada durante anos e anos a fio.