segunda-feira, 30 de agosto de 2010

[32] Vírus

Um comboio arrogante cuja cadência se torna insuportavelmente imparável é como uma bola de neve a rebolar alegremente ao longo de uma ravina sem entender que, a cada dez segundos, duplica o seu tamanho. Um vírus informático que, pé ante pé, atinge as fatias fulcrais de um delicioso computador é como um ciclista exausto que acredita que não o está, alcançando feitos inatingíveis.

O ser humano pode não ser uma máquina, mas comporta-se como tal, numa sociedade onde existem limites, condições e restrições constantes. Necessita de dormir para recarregar baterias, baseia-se em rotinas inquestionáveis e tem avarias ou, se preferir, doenças. Mas é no centro deste sistema que tanto nos podemos transformar em monstros como em anjinhos. Tudo dependente de uma atitude, de uma ordem, da execução de um comando. A potência que um vírus pode ter no nosso cérebro assume-se como perigosamente imperceptível. Mas a sua resiliência e a sua teimosia tornam-no num Adamastor cuja vitória nunca será colocada em causa. A força da nossa mente associada à força de uma ideia errada pode transformar um conto de fadas num inferno. Um paraíso oasiano num atentado bombista na Palestina. Um príncipe num simples sapo, de guelras feias e asquerosas.

O ser humano, o ser mais egoísta que existe, nunca assumirá que somos como máquinas. Mas a verdade é que as criámos à nossa imagem, para combater a preguiça daquilo que não queremos fazer. O ser humano não compreenderá a capacidade da sua mente até a testar com sapiência. E a infecção que é uma ideia mal formada na nossa cabeça nunca será visível até chegar o momento em que a máquina se desliga e que nunca mais terá reparo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

[31] Paquete

Meus caros amigos, sejam bem-vindos a bordo deste majestoso navio. Gozem bem a noite! Haverá muitas surpresas para vocês. Obrigado!” Assim falou o porta-voz do paquete Abdulrahman. Os muitos convidados, de todas as cores e feitios, sorriam cinicamente, como se estivessem contentes por ali estar. Dois rinocerontes discutiam o local onde se encontravam, enquanto remexiam o açúcar do café. Uma coruja convencia o mordomo de que estavam, com certeza, algures no oceano Índico. Uma mula, peneirenta e mal vestida, afirmava que nunca tinha vislumbrado tal paquete em nenhuma revista cor-de-rosa. As texturas eram afónicas, os sons irreconhecíveis. As escadas criavam ilusões de óptica. As casas-de-banho tinham a sanita localizada no fim de um corredor de cem metros. O banquete era servido numa mesa cujo jogo de espelhos repetia o mesmo bolo duzentas vezes.

Os convidados deslocavam-se à varanda e percebiam que estavam a voar algures por cima dos Pirenéus, onde duas girafas holandesas guinchavam de vertigens. O comandante do navio sorria bem alto no convés, de olhos fechados, a saborear a unicidade de tal momento. Ao seu lado, os pilotos da força aérea mascavam pastilha num olhar desconfiado. Algures nos quartos de dormir, dois periquitos deliciavam-se com uma feijoada, irreverentes. Os hamsters que haviam cozinhado a mesma sorriam, com bazófia, perante a genialidade de tal relíquia. No intercomunicador, o comandante fez-se ouvir: “Meus amigos, a noite apenas começou. Se tudo parece estranho, esperem pelo que aí vem!”

Preferi acordar a continuar a ver animais de todo o feitio a circularem num paquete voador. A minha cabeça funcionava a alta voltagem. Pode ser confusa. Pode misturar diferentes realidades. Pode até ser irrealista a certa altura. Mas sabe o que quer. Sabe quantos periquitos tem, e a que horas. Sabe a que horas aterra. E sabe, acima de tudo, que não vai perder os passageiros habituais por troca com uns outros que podem ser muito fiéis a início, mas que um dia escolherão outro paquete.

A vida é uma viagem sem destino. Mas sem aqueles que mais gostamos, ela passa a ter um destino. O fracasso.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

[30] Ipiranga

Inovação, conspiração, vôos mais altos, revolução e inconformismo são pontos assentes de muitos daqueles que pertencem a uma geração que floresce a cada dia que passa. Longe ou perto de casa, tudo parece óptimo. Uma ribeira abandonada soa a cataratas do Niagara, uma pizza abandonada parece que saiu do forno, uma bebida odiosa sabe a vinho do Porto do mais doce, um cagalhão cheira a lavanda. Todos nós sabemos o que isso é, e quem não sabe e se mostra curioso ao ler isto, passa a saber o verdadeiro significado da palavra “ilusão”. Os jovens de hoje em dia, e falando por experiência própria, pretendem dar o “grito do Ipiranga”. Mas cada um por si, numa descoberta isolada e auto-guiada pelos recônditos recantos de todo um Mundo que nunca será descoberto no seu expoente máximo. Todos procuram estar sós. Chegam tarde e a más horas, porque ninguém vai reclamar com as horas, comem às horas que a barriga disser, por não haver o preconceito da etiqueta digestiva. Só não compram o que querem porque há uma autoridade superior. Logo, tudo o que fugir à autoridade superior é usado e abusado até às entranhas. Até o tempo acabar.

Se está a viver uma experiência parecida, deixo aqui um conselho pouco importante. Quando aquele tempo acabar, onde nada conta a não ser nós próprios, tudo muda. A sensação de voar como passarinhos numa atmosfera cipreste, ou como gaivotas a sobrevoar o Pacífico, vai realmente transformar-se num comum quarto decrépito, com os restos dos cereais do pequeno-almoço ainda por levar para a cozinha. E aí, necessitam-se algumas coisas: ser-se inteligente, humilde e perspicaz, ao invés de ser egoísta, burro e guloso. Porque quando formos egoístas, vamos estar no quarto decrépito e quando olharmos para o tecto, ainda vamos ver os passarinhos a voar. Quando formos burros, vamos pensar que tudo o que passou não valeu a pena e que tudo voltou à normalidade. Quando formos gulosos, vamos buscar os cereais e enchemos de novo a taça.

Acima de tudo, a auto-descoberta de uma experiência isolada só pode trazer frutos se for partilhada na sua plenitude no mundo comum. Nunca se nos mantivermos isolados na esperança de que ela nunca mais acabe.