sexta-feira, 20 de agosto de 2010

[31] Paquete

Meus caros amigos, sejam bem-vindos a bordo deste majestoso navio. Gozem bem a noite! Haverá muitas surpresas para vocês. Obrigado!” Assim falou o porta-voz do paquete Abdulrahman. Os muitos convidados, de todas as cores e feitios, sorriam cinicamente, como se estivessem contentes por ali estar. Dois rinocerontes discutiam o local onde se encontravam, enquanto remexiam o açúcar do café. Uma coruja convencia o mordomo de que estavam, com certeza, algures no oceano Índico. Uma mula, peneirenta e mal vestida, afirmava que nunca tinha vislumbrado tal paquete em nenhuma revista cor-de-rosa. As texturas eram afónicas, os sons irreconhecíveis. As escadas criavam ilusões de óptica. As casas-de-banho tinham a sanita localizada no fim de um corredor de cem metros. O banquete era servido numa mesa cujo jogo de espelhos repetia o mesmo bolo duzentas vezes.

Os convidados deslocavam-se à varanda e percebiam que estavam a voar algures por cima dos Pirenéus, onde duas girafas holandesas guinchavam de vertigens. O comandante do navio sorria bem alto no convés, de olhos fechados, a saborear a unicidade de tal momento. Ao seu lado, os pilotos da força aérea mascavam pastilha num olhar desconfiado. Algures nos quartos de dormir, dois periquitos deliciavam-se com uma feijoada, irreverentes. Os hamsters que haviam cozinhado a mesma sorriam, com bazófia, perante a genialidade de tal relíquia. No intercomunicador, o comandante fez-se ouvir: “Meus amigos, a noite apenas começou. Se tudo parece estranho, esperem pelo que aí vem!”

Preferi acordar a continuar a ver animais de todo o feitio a circularem num paquete voador. A minha cabeça funcionava a alta voltagem. Pode ser confusa. Pode misturar diferentes realidades. Pode até ser irrealista a certa altura. Mas sabe o que quer. Sabe quantos periquitos tem, e a que horas. Sabe a que horas aterra. E sabe, acima de tudo, que não vai perder os passageiros habituais por troca com uns outros que podem ser muito fiéis a início, mas que um dia escolherão outro paquete.

A vida é uma viagem sem destino. Mas sem aqueles que mais gostamos, ela passa a ter um destino. O fracasso.

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