quarta-feira, 14 de julho de 2010

[29] Dois Vultos

A luz tremeluzente de um candeeiro barato incide brechas na parede lisa esmaltada que, noutro espaço temporal, se vislumbrou cheia de quadros e adereços. As sombras, ofuscadas por um vulto desfigurado, criam jogos de diagonalismo que se projectam para o infinito. Outro vulto, ligeiramente mais discreto e pertinente, lança um esgar de desconfiança e de conformismo. Levando as mãos à cabeça, o primeiro vulto enterra a sua alma no seu próprio corpo, na esperança de que o mundo não lhe desabe em cima. O segundo vulto, num espectro indecifrável, mantém-se imóvel e perplexo. A lágrima que pincela o chão escorregadio tira a fotografia à mente de quem se enterrou, enquanto a mão de alguém perplexo finalmente se moveu. Fantasmagórica e fascinantemente, dois vultos com atitudes bem distintas revelam o mesmo sentimento e a mesma preocupação. Mirando um horizonte de esperança infundada e de inconformismo impotente, o sofrimento do primeiro vulto reflecte-se no espelho de água que o segundo vulto criou à sua frente.

A insegurança de um momento pode ser compensada com a certeza de um movimento. Como a frágil peça de xadrez que pode ter inúmeras implicações, num jogo paciente e cinicamente preparado. A lágrima que anteriormente caiu impregna-se no soalho e lá deixa um selo para a eternidade. Mas se mais forem necessárias, elas fazem parte da limpeza da alma e sinal da pureza humana. A revolta tricotada nas entranhas do nosso interior cria pontos de tensão perigosamente marcados, onde o sentido de controlo impulsivo se pode tornar decisivo.

E quem limpará o soalho? Quem ajudará a mover a peça de xadrez? Quem ajudará a controlar a impulsividade, sempre comprometedora? Quem pode ser a voz da esperança e ao mesmo tempo, do realismo? Quando poderá o mundo realmente desabar em cima dos nossos ombros? Quando aquele vulto perplexo deixar de estar presente para assistir à queda da lágrima.

Basicamente, quando deixarmos de ter amigos.