domingo, 25 de setembro de 2011

[58] De Volta

O brilho das estrelas e do quarto minguante que a Lua moldava era o pano de fundo envolto na fogueira que eu acendera uma hora antes. Ao fundo, uma casa abraçava um riacho espampanante que reflectia as ínfimas realidades que ali se cruzavam. Com uma brecha da janela aberta, a melodia violinista parecia encaixar-se como uma matrioska naquele pedaço de terra. Eu, submisso, apenas sentia a fogueira arder. As lascas que pigarreavam eram como um fogo-de-artifício da vida, onde tudo tinha sido lançado ao ar e desperdiçado em todas as direcções, menos na correcta. Olhava para aquele fogo e via nele outro brilho. Não por ver algo brilhante a florescer, mas por ver algo cruel a esfumar-se por entre o aroma carbonizado que momentaneamente sombreava a Lua.

Lenta e fogosamente, dirigi-me a um “tu” qualquer em voz baixa. Aquele “tu” estava provavelmente a despedaçar-se na minha memória a um ritmo bem mais penoso e lento que aquelas labaredas. Porém, o fogo da minha memória pode ser mais lento, mas nunca deixará de ser fogo. Nunca deixará de queimar seja o que for. Nunca deixará de arranjar em amigos, acendalhas. Em paredes, um sopro. Em insónias, um ramo de silvas.

“Devolve-me as noites como esta. Onde olho à volta e vejo a minha pessoa, desenvolta e espirituosa. Devolve-me as noites solitárias, onde não tenho de pensar em mais ninguém que não valha a pena. Devolve-me todas as paixões esfaqueadas pelo teu fantasma. Devolve-me o teu amor, amor esse que nunca foi realmente dado. Devolve-me o tempo, perdido nos interstícios da minha juventude, que gastei da pior maneira. Devolve-me as forças que prendi na minha alma, evitando desistir de algo que nunca poderia ter. Devolve-me. Devolve-me.” 

terça-feira, 20 de setembro de 2011

[57] Navegando

Inebriante tarde de calor. Na possessa atmosfera que exsudava agonia nas centenas de pessoas que se alinhavam ao longo do porto, muitos leques e lenços dançavam na tímida brisa que ainda se fazia sentir. As garrafas de água transpiravam e suspiravam por uma sombra que tardava em aparecer. Os viajantes, ansiosos, verificavam os seus pertences e acessórios, consolando os familiares e amigos que, com a lágrima no canto do olho, antecipavam cenários de angustiosa espera. Eu estava ali, perplexo, indeciso entre abraçar rigidamente e acenar com leveza.

A poucos minutos de soar o gigante tufão abafado do navio, ainda mirava, a certa distância, aqueles dois com quem partilhei os meus problemas apenas três dias antes. Um estava irrequieto, respirava fundo e aprontava-se. Outra, mais rotinada nestas andanças, sorria e anuía em como tudo estava em ordem. Decidi seguir, paulatinamente, e esperar tomar a melhor decisão nestas sempre incómodas despedidas temporárias. A buzina soou, ruidosa, aguçando o bafo que circulava entre a minha t-shirt e o meu corpo. Ainda não me tinha despedido. Corri.

O abraço de confiança, perseverança e tranquilidade que passei ao primeiro, retribuí no beijo carinhoso de saudade, nostalgia e força interior à segunda. Mecânica e alternadamente, ambos subiram as escadas para o convés com vinte segundos de diferença. Ouviam-se gritos de incentivo, de adrenalina e de disfarçada inveja nos muitos que me circundavam. Os lenços, brancos como pombas, baloiçavam contra o aroma marítimo.

O segundo buzinão anunciou o inevitável. O marinheiro soltou as amarras e lentamente começou a afastar-se da doca. Lá em cima, todos acenavam numa última fotografia para rever num álbum de fotografias. Eu, cabisbaixo, preferi virar costas e afastar-me, para ver essa fotografia quando for impressa. Olhando para os bolsos, sussurrei: “Sejam vocês próprios. Confiem nas vossas capacidades. Isto vai passar num instante.” Não convencido, repeti: “Isto vai passar num instante.”

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

[56] Mentalista

Um homem na casa dos 40 anos pavoneava-se pelas ruas de uma pequena cidade transmontana. Vestido de fraque, quase passava a ilusão de vir de um casamento. Os seus passos eram leves e sumptuosamente agradáveis. Inspirava o aroma a azevinho com tal prazer que transpirava sintomaticamente alegria e pureza. Acenava às pessoas que passavam, despejando-lhes o seu melhor sorriso. Entrando no supermercado, enchia o carro com os artigos que tinha previamente escrito numa lista, completando mais uma missão. Chegando a casa, cozinhou o seu próprio jantar e, satisfeito, viu a sua série preferida. Quando chegou o momento de dormir, pegou no seu manuscrito e inseriu-lhe mais um risco. Sentia-se privilegiado por viver e queria que todos o soubessem.

A pequena história de um senhor que, à primeira vista, parece um tolo que sorri por tudo e por nada, é na realidade um senhor que, semanas antes, descobriu que tinha um aneurisma não-operável alojado no seu cérebro. Este senhor é a prova mais que clara de que viver é um privilégio e que, ainda que a outro nível, nunca sabemos quando nem como acaba. A vida torna-se, dia após dia, cada vez mais curta, e nós temos nas nossas mãos a capacidade de definir o seu rumo. Por conseguinte, este rumo define-nos como pessoas caracterizáveis e moldáveis.

Quando se deitou, o senhor voltou a reviver o medo de fechar os olhos sob risco de nunca mais os abrir. Reflectiu. Relembrou aqueles que mais ama. Orgulha-se de ter seleccionado as pessoas que realmente importam. Não as que passaram a ignorá-lo até saberem da sua morte num jornal local. Sim, as que estão ao seu lado, preocupados, como peças de um motor complexo. Sim, as que assumem na sua cara sorridente que se vestirão de fraque com ele. Não, aquelas que nem sabem o que dizer perante a situação. Ele sorriu e, confiante, fechou os olhos.