terça-feira, 19 de outubro de 2010

[34] Filtros

Algures numa fábrica localizada num subúrbio industrial, os competentes e estafados funcionários continuam a desempenhar a sua função com aspereza. Embalando pacotes e seleccionando os de melhor qualidade, o rigor exigido é de nível máximo. O capataz, emproado e de peito feito como se posasse para a New York Times, olha constantemente por trás do ombro, estalando os dedos para dirigir a orquestra dos seus subservientes. Hora a hora, toca a sineta, como uma luz de esperança para os demais desgraçados que apenas têm pacotes na mão para seleccionar.

Os dias não têm sido bons na empresa. Os lucros nunca foram muitos, mas têm regredido ainda mais. O capataz convoca uma reunião de emergência, onde questiona a capacidade dos filtradores e os responsáveis pela decisão final posteriormente enviada para a empresa-mãe. O capataz decide estar mais próximo do processo de selecção, mas não consegue discordar de decisão nenhuma. Algo se passa. Algo tem que mudar. Os produtos estão a ser recolhidos dos piores locais, com certeza. A crise financeira está a estragar tudo. A confiança dos consumidores baixou a pique e nada é agora aproveitável. O que fazer? Isto tem que ter uma solução!

Não, meus amigos. Não tem. O que se está a pedir aqui é algo muito simples e de quase impossível execução. A atitude da mente humana perante o desconhecido vai sempre continuar a filtrar e a filtrar. Onde apenas restará o lado mau. A sociedade onde vivemos é regida por atitudes separatistas, onde a quebra das regras é algo a recear. Logo, se eu vir um senhor agachado ao pé dum carro, vou pensar instantaneamente que ele o está a roubar em vez de pensar que deixou cair uma moeda que está a limitar-se a apanhar.

A impaciência, o stress e a constante desconfiança que o próprio ser humano incutiu na sociedade fez com que o capataz nunca mais tenha boas colheitas. Quem se deixar levar pela corrente da preguiça humana, nunca sequer se questionará. Quem achar que existe uma solução para isto, já é uma boa colheita.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

[33] Nulidade

Num comboio regional, apenas quatro pessoas se encontravam na minha carruagem. Além de mim, despenteado e sujo como uma esfregona vasculhada, um casal idoso ria-se das fofocas da “Casa dos Segredos”. Mais ao fundo, uma rapariga levantava-se e punha a sua cabeça fora da janela, enquanto o caminho de terra e arbustos era palmilhado a velocidade cruzeiro. Debruçando-me no peitoril poeirento, a imagem que vislumbrei era digna de um prémio de fotografia. Sem qualquer tipo de vergonha e com uma ponta de insolência, levantei-me e atravessei meia carruagem, para poder ficar na perspectiva perfeita para aquele espectáculo. Ela lá se mantinha, impávida, com os cabelos ao vento iluminados por tons dourados vindos de um pôr-do-sol prestes a apresentar-se ao serviço. Os seus olhos semicerravam-se perante o contraponto do vento, suave como uma ventoinha num dia de verão.

Naquele momento, permiti focar-me naquela imagem e pensar se a cabeça de fora da janela significaria calor, desejo de liberdade, adrenalina, imponência, classe, rebeldia, vontade em saber a próxima estação ou mesmo apanhar ar para não ficar maldisposta. Quando o telemóvel dela tocou, desesperei por ver que tal momento apenas tinha durado um minuto. No fim da chamada, ela voltou a sentar-se e olhou para mim durante milissegundos. Esses milissegundos ridículos que nada significam foram azo para umas horas de reflexão. Para lá da óbvia e explícita expressão “Que é que estás aí a fazer, já que estavas lá ao fundo?” que os olhos dela transpiravam, aquele cruzamento poderá ter significado indiferença, espanto, surpresa, arrogância, altivez, simpatia, consideração, desprezo, vontade em chamar um segurança para me acusar de assédio, vontade em não colocar a cabeça de fora novamente sob o risco de eu me sentar, desta feita, ao lado dela, ou até amor.

Como é óbvio, nunca soube nada disso, porque não me dignei a abrir a boca. Ou seja, “nada” aconteceu. Para mim, muito aconteceu. Porque qualquer episódio, com ou sem acção, é experiência de vida e podemos retirar ilações subordinadas a esse acontecimento. A reflexão sobre cada segundo da nossa vida pode tornar os segundos seguintes mais ricos. Mesmo que reflictamos sobre estar num comboio a ler fofocas da “Casa dos Segredos”.