sexta-feira, 24 de abril de 2015

[74] Um Mês

Dois desconhecidos cruzavam-se numa estação de metro. Diariamente partilhavam o mesmo caminho rotineiro, orientando-se para a mesma estação, com trabalhos semelhantes. A caricatura da carruagem já necessitava da presença de ambos, pela naturalidade e homogeneidade da sua presença. Entre boa-educação e cavalheirismo, o homem dava regularmente a passagem à senhora, jovial e tímida, arrancando dela um sorriso linear e perfeito. Dia após dia, os seus olhares comunicavam, sabendo de antemão como ambos estavam sem necessidade de vociferarem fosse o que fosse. Ele sentia uma agradável estranheza e ela um impulso alegre de descoberta. Trocaram as primeiras palavras, conheceram os seus nomes e as suas mais básicas rotinas: para onde iam, onde trabalhavam e a que horas regressavam. Entusiasmo, inconsciência e subconsciência.

Voltaram a cruzar-se nos mesmos horários na monótona carruagem. A rotina da viagem deixava de se basear na repetição, mas no brilho do palmilhar de um caminho novo. O homem aguardava impacientemente pela passagem da carruagem. A mulher contava os minutos para poder comunicar de novo com o olhar, antes de dialogar um pouco mais com aquele que se tornava em alguém tão familiar, em tão pouco tempo. Dialogavam. Riam. Relaxavam. Perdiam a saída do metro. Saíam da carruagem, às gargalhadas, por não terem dado conta do tempo passar. Regressaram ao seu local de eleição e despediram-se com aquele olhar que mil palavras tem.

Aquilo que os unia era bem mais forte que um feio e homogéneo carril metálico. Incompreensivelmente para ambos, conheciam-se como velhos amigos. Uniam-se. Apoiavam-se. Partilhavam momentos da sua vida. Faziam as suas vidas coincidir. A despedida de mais um dia culminou com um abraço. Envolvente, simples e mágico. Os braços dele envolviam as costas dela como uma rede de pesca que não deixaria fugir um tubarão branco. Ela suspirava, num clímax de protecção, fechando os olhos, encostada ao seu peito.

O metro deixou de passar. A carruagem deixou de existir. Eles nunca mais partilhariam aquela viagem. Subitamente, aquela magia espacial desapareceu. Ele queria encontrar essa carruagem ou criar uma nova. Um palco para uma nova viagem, descontextualizada das correntes de ar que marcavam a paisagem anterior. Ela nostalgiava da anterior viagem, mas sem esquecer nem aquele ex-desconhecido nem muito menos aquele abraço que durou segundos, mas que valeu por horas de vida. Conseguiram, por fim, rever-se. Num ambiente diferente e talvez menos propício, mas sem carris e correntes de ar. A cumplicidade que partilhavam levou-a a encostar a sua cabeça ao ombro dele, suspirando. As horas voavam num relógio descontrolado. A brisa marítima sabia bem e preenchia os poucos vazios que havia entre eles. Cada abraço que davam recolhia horas de ausência, interligando almas descompensadas. O beijo surgiu. Os seus lábios uniram-se lenta e carinhosamente. A brisa entrelaçava os cabelos dela nas mãos dele. Ele envolvia as mãos na sua face esbelta e lisa, protegendo-a de todos os males do Mundo. Os lábios separaram-se. Ela começou a correr. Ele, estupefacto e de olhos esbugalhados, ficou prostrado, sem reacção. Ela desapareceu ao fundo, entrando no autocarro mais próximo. Cabisbaixo, ele caminhou ao longo da praia, matutando, questionando, reflectindo em tudo o que se tinha passado nesta viagem relâmpago de trinta dias. Da educação à simpatia, da brincadeira à cumplicidade, da empatia ao carinho, do abraço ao beijo, do encantamento à ausência.