sábado, 22 de janeiro de 2011

[40] Genial

Toda e qualquer acção relacionada com arte trás, consigo atrelada, a palavra “criatividade”. Uma originalidade inventiva testemunhada e avaliada pelo público-alvo, que tanto a pode colocar no pedestal como engoli-la sem apelo nem agrado. A máquina trituradora a que, mais formalmente, chamamos sociedade, define as suas tendências artísticas e culturais por movimentos massificados. E aí, o papel do artista e de meses infindáveis de suor e neurónios queimados chega ao fim como quem estala os dedos. O artista falhou. Porquê? Por não ser criativo? Não. Por não ser original? Não. Infelizmente, a criatividade do artista tem dois caminhos. Ou se adequa à limitação intelectual da sociedade e se restringe a ela, ou abarrota-a abrindo uma pequena brecha nesse muro de Berlim, incutindo uma nova ideia e abrindo novos caminhos. Como todos sabemos que a segunda opção apenas acontece em 1% dos casos, é triste verificar que a originalidade do artista está subjacente como “a ideia de um maluco”.

Procuremos novos caminhos para alcançar os nossos objectivos. Quem se cingir ao Mundo existente e o continuar a proclamar como extraordinário irá ser substituído no futuro, como uma peça estragada de um carburador de um Ford 300 em enferrujamento. Originalidade é motivo de questionamento, curiosidade e motivação. Criatividade é sonho, engenho e auto-confiança.

Não vivo sem criatividade. Vivo imaginando, nos recantos do meu ser, como seria eu sem imaginação. E em todos os casos, acabo morto. Vivo criando, entre os meus neurónios, cenários passíveis de serem concretizados. A realidade que vivo é limitativa e insuficiente perante a possibilidade maquiavélica de perspectivar o passo seguinte. Podem chamar-lhe criatividade ponderada, mas brindo a ela com todas as minhas forças.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

[39] Esfomeado

Fugaz e inolvidável. Uma lágrima ardente escorria-te pela face requintada, numa noite chuvosa e ritmada por tragos de luz incandescente. Voltavas costas, penosamente, enquanto me prostrava sentindo a água me percorrer o pescoço em fios ondulados a caminho do abismo. O meu rosto fechou-se em copas, pensando em espadas e vislumbrando ouros. Cada vez ias mais longe e era a minha altura de virar costas. A minha teimosia não me fez rodar os pés ensopados, e continuava a mirar uma das palmeiras do meu oásis. A minha consciência anunciava, tal amola-tesouras, uma constipação, bronquite ou repugnante faringite. No entanto, facilmente passaria uma semana penosa e febril na cama, desde que estes miraculosos segundos fossem vividos na sua plenitude. Mal te reconhecia o vulto, mas os meus olhos sentiam o teu respirar. Os meus ouvidos ainda ouviam a tua voz doce, entrelaçada com gotas de água a ribombar contra asfalto de má qualidade. Um trovão soava ao longe, mas maior era o que soava no meu subconsciente. Deixei de te ver e aí soube que se iniciava um novo ciclo. Onde apenas a memória perduraria. O cérebro teria de criar a tua imagem na minha cabeça para que eu te pudesse ver. Teria de esperar que os meus sonhos fizessem umas paragens nos bons velhos tempos. Onde convivíamos e desabafávamos enquanto víamos as folhas de Outono cair através da janela. Onde discutíamos a nossa vida ao ritmo orquestral de garrafas de meio litro de cerveja.

Chego ao dia de hoje e estás longe. Bem mais do que o trovão que na altura rebentou umas boas escalas de decibéis. Vives um mundo e eu limito-me a imaginar outro. Concretizas ambições enquanto eu continuo a coleccioná-las, tal caderneta de cromos. Nós podemos fazer o que bem entendermos, que eu posso fazer os meus olhos sentir o teu respirar, posso fazer os meus ouvidos reconhecer a tua voz doce. E, quando nos reencontrarmos, tudo vai parecer como um velho encontro de vizinhos que tomam café regularmente. Onde iremos ver as folhas de Outono cair e beber de meio em meio litro de cerveja.

A amizade é o melhor sentimento que se pode ter. Alimentada, torna momentos a valerem por uma vida. Esfomeada, pode tanto valer muito pouco, como valer bem mais do que a alimentada durante anos e anos a fio.