terça-feira, 17 de abril de 2012

[63] Elísios

Um sem-abrigo, deslavado e trapaceiro, deslizava pelas ruas de Paris. Pesado e antiquado na sua barba grisalha, aglomerava maus-olhados e indiferenças dos milhões que lhe passavam ao lado a caminho do triunfo. Do Arco do Triunfo, imperial e fanfarrão, a rematar uma magnífica transversal à Cidade-Luz. Os infindáveis cruzamentos com pessoas, carros e pombos denotavam análises superficiais a elementos ainda mais superficiais. Pessoas com carapaça mas sem recheio, com maquilhagem mas sem cara, com adorno mas sem conteúdo.

Certa vez, pastava junto a uma das pastelarias mais caras da Europa, quando se sentiu observado, perscrutado, sondado por um ser imponente, de passo largo e sonoramente agradável no contacto com a calçada desmazelada. O rasto que serpenteava deixava tragos de azevinho, folhas de abeto e aromas ciprestes, a tiquetaquear incandescência a caminho do Arco do Triunfo. Raramente teve a oportunidade desse mesmo vislumbre. Semana sim, semana não, carregava penosamente a sua mochila ao longo dos Campos Elísios, apenas para aumentar a probabilidade de encenar aquele salpico de grandeza, de estimular os seus sentidos para aquilo que dificilmente estará ao alcance do mais comum dos mortais.

As poucas vezes que os seus olhos brilharam ao encadeamento do comboio dourado, ele deixou ficar-se prostrado, de mão no queixo, a respirar bem fundo, na tentativa de sugar aquele trago de azevinho. Deslavado e trapaceiro, ele desmantelou a sua mente num processo ímpar e extravagante, na esperança de transformar sentidos em experiências, ambições em sorrisos, esperanças em navegações.