quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

[42] Fortalezas

Os tempos marcam posições, reflectem ideais e deixam marcas de água incrustadas numa sociedade que, ao longo dos séculos, tem sido capaz de mostrar aquilo que é correcto. E por mais persistente que seja a ideia, ou conservador o regime, ou ditatorial o homem-forte de um país, todas as fortalezas de poder caem. Caiu o Império Romano, caiu o III Reich, caiu Mussolini, caiu Salazar. Caiu mais recentemente Mubarak no Egipto, pontapeado por uma população em fúria que pararia um país inteiro no tempo enquanto o seu contestado líder não fosse exilado. Fica a clara ideia de que, por mais intransigente que seja a personalidade de uma só pessoa, a justiça vem ao de cima e outros interesses se sobrepõem a um capricho criado num cérebro ávido de poder.

A cedência, transposta para o nosso dia-a-dia, molda as pessoas que somos. Uma cedência não nos torna corações de manteiga. Nenhuma cedência não nos torna vilões até ser provado o contrário. A evolução do ser humano passa pela adaptação da fugaz realidade que criamos filosoficamente ao longo do nosso crescimento. Quem se recusar a aceitar novos ideais, será espezinhado na multidão que foge em pânico de um recinto de espectáculos em chamas. Pode ser capaz de se levantar, pode não o ser. Quem se levantar, estará mais aberto a aceitar a dureza da vida. Porquê? Pelo óbvio. Porque já sofreu na pele com uma bota da Timberland.

Todas estas situações, apesar de absurdas, são infinitamente recorrentes no mundo actual. Relembrando num passado recente, o macabro aumento de arrombamentos de portas trancadas após ter sido encontrada uma senhora falecida numa casa abandonada anos e anos depois. O desleixo apenas é curado com a tragédia. Para passar a ser uma anedota.

Eu cedo. Não sou coração de manteiga. Não sou vilão. Não sou espezinhado. Não arrombo portas. Mas também não as tranco.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

[41] Bilhete

Um bilhete debaixo da porta poeirenta. Silêncio. Curvo-me, esperançoso. Sem remetente. Sem destino. Um esgar de desconfiança. Um brilho nos olhos. Um rasgar cortante no vazio. Restos a caírem no soalho. Um convite indiscreto. Provavelmente desmesurado. Certamente tentador. Indubitavelmente intranquilo. Uma chávena de café quente. Duas colheres de açúcar. Um golo com duas frases lidas. Uma pausa para outras três. Incredulidade com um tremor nas minhas mãos ásperas. Um sofá. Não posso ler isto de pé. Arrebatador mas confuso. Revolucionário mas escondido na trincheira. Saudoso mas mascarado. Alegre mas convencido.

A fortuna da vida traz-nos momentos em que aquilo por que sempre pensámos esperar pareça redundante no momento em que não o devia ser. A impaciência de anos transforma-se em insignificância, pelas muralhas que resistiram ao dia-a-dia comum. A expectável felicidade de certo momento reduz-se ao modo de como a tornar possível, secundarizando-a. A inércia que atinge o nosso ego no momento em que as nossas moléculas deviam estar drogadas de adrenalina é intrigante. Mas como corrigir tudo isso? Que raio de seres somos nós?

Já me esquecia do bilhete. Escrito à mão. Caligrafia irreconhecível. Mas arriscaria feminina. Sem data de envio. Escrito há anos? Não me parece. Actual. Ponto final. Penso em algo que faça sentido. O café acabou. Não, nada disso. Objectivo? Não sei. Talvez saiba. Talvez o tenha à frente dos meus olhos. Mas não quero acreditar nele. Conteúdo? Algum. Arrasta-me para dentro do papel. Muito, então. Quero responder. Não tem remetente. Isso já sabia. Inconsequente. Amachuco o bilhete. Atiro-o. Em cheio na jarra japonesa. Volto a apanhá-lo. Desembrulho-o. Quero saber. O remetente? Não.

Quero saber como destruir o bilhete. Rasgando? Mutilando? Queimando? Não. O bilhete. Aquele que, após eu o ter lido, já estava guardado na minha memória para a eternidade.