Um homem, na casa dos 40 anos, vagueia pelas ruas de uma cidade
cosmopolita. Bem-parecido, com um bom carro e um bom trabalho. Respira
prosperidade e perseverança num Mundo cheio de lacunas e de desequilíbrios entre
estratos sociais. Entra num café repintado à art-deco e pede um cappuccino.
Saboreia-o num fim de tarde húmido e frio, vendo os autocarros a distribuir uma
ponta da cidade para a outra, sorrateira e implacavelmente. Deixa uma gorjeta à
Sra. Isabel e despede-se com um educado e vigoroso Até amanhã, acenando. Continua a caminhar sozinho, respirando
fundo e reflectindo no seu dia. Isola-se no seu mundo musical, com os headphones a tocar uma boa melodia de blues.
Blue é como ele se sente,
tal como um lobo solitário que entrega a sua vida aos outros, sem esperar troco
ou recompensa. Até um hitman a
espera, depois de abater o seu alvo. Um lobo solitário que dá a volta ao Mundo
pelo que acredita, sem um rasgo de euforia ou drama. As suas feições são
inalteráveis, prostradas numa escultura de mármore. Contido, como se estivesse
inactivo ou como se estivesse pronto a explodir. Satisfá-lo ver felicidade,
contribuir para ela de algum modo, sem se preocupar com a sua. É isso que ele considera
que o completa. Chega a casa, despe o seu casaco e atira os headphones para o sofá. Deixa os sapatos
no tapete de entrada e toma um banho quente a seguir. Reflecte no banho, como
sempre, tal anfiteatro filosófico num poliban. Mete uma pizza no forno e liga a televisão para ver as notícias. Não ouve as
notícias. Apenas procura o vazio que se apoderou do lobo solitário. Vê a fatia
de pizza que já devorou como um vazio
no prato. Algo tem de o fazer caminhar. Pega no computador, coloca-o na mala e
sai de casa. Dirige-se à coffee-house mais
próxima e senta-se sozinho numa mesa. Precisa de ver gente. Observá-las à
distância. Analisá-las. Teorias socio-comportamentais, liderança, psicopedagogia.
Alguém se ri. Alguém deixa cair um prato. Que analisa ele, pergunta-se. O rumo.
O seu rumo. Um lobo pode caminhar sozinho, mas nunca perde um rumo. Um lobo
solitário encontra rumo na oportunidade. Sorrateiro, cerra o olhar e foca o
horizonte, ameaçador. Levanta-se e sai paulatinamente, enfrentando o gélido ar
da rua cinzenta.
Um vazio não tem de ser uma perda. Um vazio é uma base, um molde
deixado pela destruição/alteração de algo. Um vazio só é razão para se desistir
para quem não tem força para se agarrar a algo. Não interessa a prosperidade,
aparência ou idade. Todos nós temos vazios. Todos têm oportunidade de construir
algo melhor. Todos nós somos lobos. Nem todos são solitários, é certo. Mas nem
todos têm a capacidade de se levantar e cerrar os dentes quando a íris apenas
vislumbrar trevas e escuridão.