quinta-feira, 19 de novembro de 2015

[77] Lobo

Um homem, na casa dos 40 anos, vagueia pelas ruas de uma cidade cosmopolita. Bem-parecido, com um bom carro e um bom trabalho. Respira prosperidade e perseverança num Mundo cheio de lacunas e de desequilíbrios entre estratos sociais. Entra num café repintado à art-deco e pede um cappuccino. Saboreia-o num fim de tarde húmido e frio, vendo os autocarros a distribuir uma ponta da cidade para a outra, sorrateira e implacavelmente. Deixa uma gorjeta à Sra. Isabel e despede-se com um educado e vigoroso Até amanhã, acenando. Continua a caminhar sozinho, respirando fundo e reflectindo no seu dia. Isola-se no seu mundo musical, com os headphones a tocar uma boa melodia de blues.

Blue é como ele se sente, tal como um lobo solitário que entrega a sua vida aos outros, sem esperar troco ou recompensa. Até um hitman a espera, depois de abater o seu alvo. Um lobo solitário que dá a volta ao Mundo pelo que acredita, sem um rasgo de euforia ou drama. As suas feições são inalteráveis, prostradas numa escultura de mármore. Contido, como se estivesse inactivo ou como se estivesse pronto a explodir. Satisfá-lo ver felicidade, contribuir para ela de algum modo, sem se preocupar com a sua. É isso que ele considera que o completa. Chega a casa, despe o seu casaco e atira os headphones para o sofá. Deixa os sapatos no tapete de entrada e toma um banho quente a seguir. Reflecte no banho, como sempre, tal anfiteatro filosófico num poliban. Mete uma pizza no forno e liga a televisão para ver as notícias. Não ouve as notícias. Apenas procura o vazio que se apoderou do lobo solitário. Vê a fatia de pizza que já devorou como um vazio no prato. Algo tem de o fazer caminhar. Pega no computador, coloca-o na mala e sai de casa. Dirige-se à coffee-house mais próxima e senta-se sozinho numa mesa. Precisa de ver gente. Observá-las à distância. Analisá-las. Teorias socio-comportamentais, liderança, psicopedagogia. Alguém se ri. Alguém deixa cair um prato. Que analisa ele, pergunta-se. O rumo. O seu rumo. Um lobo pode caminhar sozinho, mas nunca perde um rumo. Um lobo solitário encontra rumo na oportunidade. Sorrateiro, cerra o olhar e foca o horizonte, ameaçador. Levanta-se e sai paulatinamente, enfrentando o gélido ar da rua cinzenta.

Um vazio não tem de ser uma perda. Um vazio é uma base, um molde deixado pela destruição/alteração de algo. Um vazio só é razão para se desistir para quem não tem força para se agarrar a algo. Não interessa a prosperidade, aparência ou idade. Todos nós temos vazios. Todos têm oportunidade de construir algo melhor. Todos nós somos lobos. Nem todos são solitários, é certo. Mas nem todos têm a capacidade de se levantar e cerrar os dentes quando a íris apenas vislumbrar trevas e escuridão. 

Sem comentários: