Fecho a tampa do meu computador. Terminando uma série de documentos
rotineiros mas necessários, estou livre no meu dia. O dia está solarengo e a
brisa que sopra é refrescante e equilibra a atmosfera, lúgubre e sinuosa. Tempo
livre para mim e para as minhas coisas. Vou dar uma volta. Entro no meu carro e
começo a guiar, sem destino. Troco o CD de música. Jazz está bom. Miles Davis
está óptimo. Blue in Green está perfeito. Que momento mágico. Vejo os
quilómetros a ficar para trás de mim, como páginas de um livro que devoro
maquiavelicamente. As paisagens começam lentamente a mudar a sua fisionomia,
cada vez menos urbanas e mais ciprestes, selvagens, arborizadas. Viajo sem
rumo, vejo eu. Um rumo temos sempre, penso eu. Sei que rumo quero tomar, assumo
eu, esperançoso.
O jazz deixa-me saudosista. Dos tempos em que o descobri, das viagens
que marcaram e definiram o meu ego. Faz-me pular nesta máquina devoradora que é
o tempo. Quanto tempo passou? Desde o quê, pergunto-me. Desde que te pude ver.
Quem és tu? Os teus traços não se desvanecem nesta composição melódica. Que
saudade. Que puta de saudade. Perdão, Miles. Nem devia interromper o teu
compasso, quanto mais envolvê-lo com injúrias. Que raio de saudade. Soa melhor
e é eficaz na mesma. De ver o teu sorriso a fazeres o que mais gostas. De te
ver séria e concentrada a fazeres o que mais gostas. De te encorajar a fazer o que mais gostas. De te confortar quando aquilo que mais gostas não correu
como querias. Jazz. Este piano que me acalma. Este saxofone, impetuoso e que me
faz fechar os olhos, interiorizando algo que se aproxima da palavra perfeição.
Como posso fechar eu os olhos e ver-te a ti?
Continuo a viajar. Em direcção a quê? Um rumo temos sempre, penso eu.
A ti? Oh, como era bom abraçar-te de novo. Esqueço. Relembro. Saudade. As
circunstâncias são desadequadas e desajustadas. Mas é lindo e verdadeiro. Não
pode ser de outra forma. É desajustado. Os mundos são diferentes. Continuo a
viajar, meneio a cabeça e suspiro. Saudade. Este bicho que nos sorrateiramente
assombra. Tão bom ter saudades. Significa que vivemos algo que nos marcou. Que
nos completou. Tão maquiavélico ter saudades. Como algo que vivemos pode não
ser repetido e transformar-se numa saudade eterna, como os entes queridos que
já não voltam. Encostei o carro. Tenho de a aniquilar. Esta saudade. Perdão,
Miles. Esta puta de saudade.
Sem comentários:
Enviar um comentário