quinta-feira, 21 de maio de 2015

[76] Saudade

Fecho a tampa do meu computador. Terminando uma série de documentos rotineiros mas necessários, estou livre no meu dia. O dia está solarengo e a brisa que sopra é refrescante e equilibra a atmosfera, lúgubre e sinuosa. Tempo livre para mim e para as minhas coisas. Vou dar uma volta. Entro no meu carro e começo a guiar, sem destino. Troco o CD de música. Jazz está bom. Miles Davis está óptimo. Blue in Green está perfeito. Que momento mágico. Vejo os quilómetros a ficar para trás de mim, como páginas de um livro que devoro maquiavelicamente. As paisagens começam lentamente a mudar a sua fisionomia, cada vez menos urbanas e mais ciprestes, selvagens, arborizadas. Viajo sem rumo, vejo eu. Um rumo temos sempre, penso eu. Sei que rumo quero tomar, assumo eu, esperançoso.

O jazz deixa-me saudosista. Dos tempos em que o descobri, das viagens que marcaram e definiram o meu ego. Faz-me pular nesta máquina devoradora que é o tempo. Quanto tempo passou? Desde o quê, pergunto-me. Desde que te pude ver. Quem és tu? Os teus traços não se desvanecem nesta composição melódica. Que saudade. Que puta de saudade. Perdão, Miles. Nem devia interromper o teu compasso, quanto mais envolvê-lo com injúrias. Que raio de saudade. Soa melhor e é eficaz na mesma. De ver o teu sorriso a fazeres o que mais gostas. De te ver séria e concentrada a fazeres o que mais gostas. De te encorajar a fazer o que mais gostas. De te confortar quando aquilo que mais gostas não correu como querias. Jazz. Este piano que me acalma. Este saxofone, impetuoso e que me faz fechar os olhos, interiorizando algo que se aproxima da palavra perfeição. Como posso fechar eu os olhos e ver-te a ti?

Continuo a viajar. Em direcção a quê? Um rumo temos sempre, penso eu. A ti? Oh, como era bom abraçar-te de novo. Esqueço. Relembro. Saudade. As circunstâncias são desadequadas e desajustadas. Mas é lindo e verdadeiro. Não pode ser de outra forma. É desajustado. Os mundos são diferentes. Continuo a viajar, meneio a cabeça e suspiro. Saudade. Este bicho que nos sorrateiramente assombra. Tão bom ter saudades. Significa que vivemos algo que nos marcou. Que nos completou. Tão maquiavélico ter saudades. Como algo que vivemos pode não ser repetido e transformar-se numa saudade eterna, como os entes queridos que já não voltam. Encostei o carro. Tenho de a aniquilar. Esta saudade. Perdão, Miles. Esta puta de saudade. 

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