segunda-feira, 17 de maio de 2010

[26] Miragem

Sinto o suor a descer pela minha cara, sentindo o seu sabor, impavidamente, a penetrar e a vandalizar o meu paladar. As gotas que escapam enterram-se num areal sem fim, a caminho do abismo da espécie humana. O buraco negro que está debaixo dos nossos próprios pés pode estar protegido por uma camada finíssima de vidro, onde cada passo em falso pode ser o fim. Mas num deserto como este, onde o calor torna cada pegada um tormento e onde cada brisa escaldante é um sinónimo de esperança, parar é morrer. Olhar para o rasto que deixámos para trás não é nem suficientemente encorajador nem melancolicamente belo.

O ser humano que conseguir estar num deserto sem olhar para trás uma única vez, não tem sentimentos. É uma máquina controladora de pulsações, que não pode registar as suas próprias, por não as ter. É gelado como o suor que escorre pelas minhas costas neste inferno. E quem assim é, arrepender-se-á de algo na sua vida. Os que olham algumas vezes para trás são os mais sensatos. À procura de um oásis que possa ter escorregado na ponta dos dedos. De uma gota de água que injecte força e esperança. Tentando ser racional no meio do caos, ludibriando regras e preconceitos, alcançando alguma coisa, por mais pequena que seja.

Mas cada vez mais me apercebo, enquanto faço uma pausa, que haverá sempre alguém na minha vida a querer tirar-me do deserto, e que haverá sempre alguém a querer deixar-me aqui. Eu entendo tudo isso. Pertinentemente me abstenho e deixo a minha mente decidir. Porque ainda é ela que decide. E apesar de ela estar a ferver no meio deste forno à escala interplanetária, ela já teve as miragens que tinha a coleccionar. Foram belas imagens de água engarrafada a saír de um frigorífico Ariston, e de um banho tomado em imersão, com jactos de água a corresponderem com precisão nos músculos das costas que mais necessitavam de relaxar.

Miragens, todos nós temos. Mas é quando assentamos o nosso belo, pequeno, grande ou majestoso cu no chão, bem lá no fundo, que sabemos onde estamos. E que nos apercebemos que a vida é um inferno e não um conto de fadas. E nessa altura, os que se safarão sem um arranhão serão os inteligentes, os perspicazes e os calculistas.

Isto claro, além dos que queimaram o rabo.

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